Limpo mais limpo, não há
[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 226, 13 de Abril de 1999]
Os campos e as praias não são caixotes de lixo, mas infelizmente alguns agem como se o fossem. E não serão poucos, tendo em consideração a quantidade de detritos acumulados em certas zonas.
A Primavera já chegou e o Verão aproxima-se a passos largos. Com o calor estival são inúmeros os portugueses que saem de casa rumo ao campo ou à praia. O período da Páscoa confirmou largamente essa tendência, traduzida no intenso tráfego que se registou nas principais estradas do país. Grande número de portugueses rumaram ao Algarve na esperança de gozarem os primeiros dias de praia. Muitos foram para a Serra da Estrela em busca dos últimos resquícios de neve. Outros aproveitaram para realizar um piquenique em família, junto de uma barragem ou curso de água à sombra de algumas árvores. As opções foram diversas, consoante as motivações de cada um. Importante será o facto de poucos terem sido aqueles que não passaram férias “fora de portas”.
Portugueses fora de portas
O crescente interesse pelo contacto com a natureza e pelas actividades de ar livre é altamente salutar. No entanto, o reverso da medalha traduz-se geralmente em imensas quantidades de detritos abandonados nas áreas frequentadas. Os campos e as praias não são caixotes de lixo, mas infelizmente alguns agem como se o fossem. E não serão poucos, tendo em consideração a quantidade de detritos acumulados em certas zonas.
As áreas protegidas, muito procuradas pelas suas características, não estão livres desse problema, que ocorre, mais ou menos, em todo o território nacional. Quem passa na estrada fronteira à Reserva Integral da Mata do Solitário, em direcção ao Portinho da Arrábida, não ficará indiferente ao lixo que aí se encontra. A Lapa do Fumo, também situada no Parque Natural da Arrábida (PNA), apesar do grande interesse arqueológico e de se encontrar encerrada, não escapou ao problema do lixo. Os sacos de plástico usados para a prática do “sku” no Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE), “decoram” o relevo depois do degelo. Na Barragem da Mula, no Parque Natural de Sintra-Cascais (PNSC), encontram-se os restos de um acampamento: desde uma tenda, a sacos-cama e bastantes resíduos alimentares! Por incrível que pareça, os cartuchos de caçadeira também são comuns nas áreas protegidas; aliás, surgem um pouco por todo o lado.
Longe da vista, longe do coração
As grutas também não escaparam ao problema do lixo. Infelizmente são muitas vezes vistas como “buracos” ideais para esconder os resíduos indesejáveis. O mau hábito de transformar as cavidades em vazadouros torna-se particularmente gravoso se se tiver em conta a probabilidade dos aquíferos serem contaminados. Nos terrenos carbonatados, a grande permeabilidade contribui para o baixo poder de depuração das águas. As populações livram-se, aparentemente, do problema do lixo mas, em contrapartida, estão a poluir as águas que utilizam. A poluição de aquíferos devido ao lançamento de gado doente e lixo para as grutas teve consequências particularmente gravosas durante a Idade Média. Para além do impacte sobre a qualidade da água, as “lixeiras cavernícolas” atentam contra o património espeleológico. As inscrições e os mais recentes, graffitis, que surgem em diversas grutas, também constituem motivo de preocupação.
O sumidouro da Gruta de Colaride I (na Península de Lisboa) é usado, desde 1976, como vazadouro de águas residuais (ver jornal Forum Ambiente nº 127, de 2 de Maio de 1997). O Algar do Montijo (na região de Tomar) foi inicialmente designado “Algar dos Remédios”, devido à abundância de medicamentos aí depositados. O Algar do Casal de Baixo e as minas de ouro de Poço Redondo, limpas pelo Centro de Estudos e Protecção do Património da Região de Tomar (CEPPRT), também se encontravam repletas de resíduos (ver Forum Ambiente nº 130, de 23 de Maio de 1997). Os exemplos são, infelizmente, diversos e estendem-se aos arquipélagos.
Nas cavidades açorianas mais frequentadas também se encontram quantidades apreciáveis de resíduos, como nos túneis de lava dos Balcões e das Agulhas, na ilha Terceira (ver jornal Forum Ambiente nº 203, de 16 de Outubro de 1998). Tal como nos carsos do Continente, onde essa prática tem originado problemas de poluição de aquíferos, nos Açores o lema “longe da vista, longe do coração” é de aplicação geral. Ainda prevalece o hábito de lançar animais mortos para as cavidades, como acontece na Gruta do Galeão, assim como lixos e entulhos de natureza diversa, como se verifica na Gruta do Galeão, Gruta do Carvão e Gruta da Merda.
No top da vergonha
Os resíduos encontram-se escondidos nas cavidades naturais ou artificiais, mas também são frequentes à superfície. Segundo o Espeleo Clube de Torres Vedras (ECTV) e a Associação de Defesa do Património de Torres Vedras (ADPTV), que realizam anualmente uma operação de limpeza da costa (“Costa Viva”), os entulhos, os resíduos metálicos e as madeiras constituem o aspecto mais preocupante da degradação do litoral. Trata-se de um tipo de poluição protagonizada por um grupo particular de cidadãos, que actuam na “calada da noite”. No segundo lugar do “top que nos envergonha a todos” surgem os plásticos, vidros e papéis. Regra geral, estes detritos estão associados aos cidadãos utilizadores das praias ou do campo e manifesta-se particularmente nos fins-de-semana e férias, nas proximidades de estacionamentos, bermas de estrada, bares ou locais de piquenique. Neste grupo, os papéis, garrafas ou garrafões de água e refrigerantes merecem um especial destaque, tendo sido igualmente recolhida uma quantidade considerável de fraldas e preservativos, pensos higiénicos, restos alimentares e fezes humanas. Também foram encontrados recipientes com produtos químicos, geralmente ligados a actividades agrícolas, medicamentos e seringas. O ECTV e a ADPTV recolheram mais de 14 toneladas de lixo em três acções de limpeza (de 1995 a 1997), número que revela bem a importância do fenómeno.
Poder-se-á dizer que “o problema é de todos em geral e de ninguém em particular”, como desculpa para a indiferença generalizada. Mas lembre-se que o problema começa com você!
© Paulo Arsénio/CEPPRT (digitalização do jornal Forum Ambiente 1997)
[Poder-se-á pensar que, no que concerne ao tratamento do lixo, o nosso povo está mais educado, mais consciencializado, digamos mais civilizado, do que há uma década atrás. Seria normal, lógico, razoável, não é? Acontece que a tendência tão recorrente quanto curiosa do “portuga” deitar lixo nos sítios mais impróprios para o efeito continua de “pedra e cal”. Mais, apesar de existir recolha de lixo a nível municipal, inclusive de objectos volumosos, e ser mais que sabido que “é proibido deitar entulho”, não é raro encontrar um frigorífico, uma sanita ou um sofá nos sítios mais insólitos e até, pasme-se, algo “remotos”! É curioso que tipos sem quaisquer hábitos desportivos se dêem ao trabalho de carregar tais objectos até sítios que não lembram ao diabo!!! De resto, o mais comum é largar o lixo à beira da estrada. Tais práticas são perpetradas tanto por cidadãos a título individual (muitas vezes com a ajuda de comparsas) como por empresas que não pugnam propriamente pela legalidade dos processos. Quaisquer que sejam as motivações, certo é que as preocupações ambientais ou não existem ou se encontram em algum recanto esquecido desses expeditos mas pouco "ecológicos" cérebros…
Mais grave é quando a “coisa” toma proporções de lixeira e, aparentemente ou não, com o conhecimento ou consentimento implícito da junta de freguesia ou da câmara municipal da respectiva área. Estranho? Exagero? Impossível? Nem tanto… Basta ver dois exemplos denunciados no site da Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE): a lixeira de Vale Mirão e uma estrumeira no Planalto de S. Mamede.
Por último, não sei se será oportuno lembrar que estamos no século XXI? Não parece, mas é verdade…]