Ética nas cavernas
[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 149, 3 de Outubro de 1997]
© DR (digitalização jornal FA 1997)
As cavernas possuem valores únicos que estão ameaçados devido ao desconhecimento de uns e ao vandalismo de outros. Esses valores uma vez destruídos são geralmente irrecuperáveis. A criação de códigos deontológicos de espeleólogos é o reconhecimento de que a responsabilidade de conservar as cavernas deverá partir daqueles que as estudam e exploram.
A necessidade de se criar um código deontológico dos espeleólogos tornou-se cada vez mais premente, à medida que estes se aperceberam dos impactes causados pela actividade. A Australian Speleological Federation (ASF), por exemplo, criou o Minimal Impact Caving Code (MICC) com o fim de mitigar os impactes inerentes à prática da espeleologia. Segundo esta federação, o MICC tornou-se necessário porque os espeleólogos são um dos principais causadores de impactes em grutas. A ASF parte do princípio que “toda a visita a uma gruta é causadora de impacte”.
Os espeleólogos australianos dispõem ainda do ASF, Code of Ethics (o código ético da ASF) que funciona com um complemento ao MICC. Paralelamente, reconhecendo que o primeiro objectivo dos espeleólogos será a protecção das grutas e carsos, a ASF promove activamente a sua conservação através de acções de educação ambiental, sensibilização e treino.
A National Speleological Society (NSS), sediada nos Estados Unidos, também reconhece a importância da conservação ambiental, centrando as suas actividades em torno desse objectivo.
A Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE) publicou diversas vezes no seu boletim interno - Algarocho - o Código Deontológico dos Espeleólogos.
I. As grutas são um dos últimos testemunhos inalterados da Natureza, constituindo verdadeiras reservas naturais. Por isso os espeleólogos devem assegurar a manutenção das condições originais, evitando que elas sejam alteradas desnecessariamente.
1. Não retirar das grutas qualquer concreção, vestígio arqueológico, amostra geológica ou exemplar biológico sem que se destinem a um estudo devidamente planeado e com fiscalização assegurada.
2. Não alterar a evidência de episódios da história da gruta, não realizando escavações nem retirando concreções já encontradas partidas.
3. Escolher cuidadosamente um só caminho pela gruta e não lhe acrescentar deambulações desnecessárias.
4. Deixar as concreções intactas e tão limpas como estavam.
5. Não fazer incisões nas paredes das grutas nem escrever ou desenhar com a chama do gasómetro.
6. Não deixar resíduos de carbureto nem lixo e recolhê-lo quando encontrado, por muito insignificante que pareça.
7. Evitar fumar, sobretudo nas grutas sem ventilação ou com morcegos.
8. Evitar deixar dejectos humanos durante as visitas.
9. Evitar desobstruções quando estiverem em risco concreções ou formas características da gruta.
10. Evitar a produção, dentro das grutas, de gases tóxicos de qualquer natureza (explosivos, motores).
11. Manter a zona junto à entrada das grutas limpa e sem alterações desnecessárias.
12. Esclarecer os habitantes das regiões cársicas sobre os inconvenientes da utilização das grutas como vazadouro de lixo, esgotos e animais mortos, ou do seu entulhamento com pedras.
13. Denunciar e combater os comerciantes de concreções e cristais das grutas.
14. Deixar a vida cavernícola (biológica e físico-química) prosseguir tão inalterada quanto possível.
II. Os espeleólogos devem colaborar e coordenar os seus estudos, em vez de actuarem isolados, evitando tornarem-se assim nos principais destruidores das grutas.
a) Aos principiantes:
1. A falta de conhecimentos técnicos, científicos e éticos poderá originar graves consequências para o visitante e para a gruta.
2. Aquele a que surge a curiosidade de saber o que é uma gruta não deve fazer explorações sozinho ou com amigos na mesma situação.
3. Deve dirigir-se a uma associação de espeleologia e não a grupos com interesses dispersos por várias actividades.
b) Aos espeleólogos:
4. Quem já adquiriu os conhecimentos técnicos e científicos suficientes sobre a espeleologia e a sua experiência o habilita a entrar numa gruta com principiantes, deve enquadrar apenas um número muito reduzido pois de outro modo não poderá vigiar a sua actuação e evitar que cometam erros irreparáveis.
5. Não divulgar a existência de uma gruta entre indivíduos sem preparação para nela entrarem.
6. Evitar a todo o custo a actuação de vândalos e caçadores de recordações.
c) As associações de espeleologia:
7. Uma associação de espeleologia não deve efectuar visitas a grutas que estejam a ser exploradas ou estudadas por outra associação sem acordo desta.
8. Se uma associação tiver terminado os seus estudos numa gruta ou não tiver previstos nenhuns trabalhos futuros deve facilitar o acesso de outra associação à gruta. Devem mesmo as duas associações estabelecer relações de colaboração, facultando a primeira os resultados já obtidos para conseguirem em conjunto um estudo tão completo quanto possível.
9. Aquando da visita a uma gruta deve dar-se conhecimento ao proprietário do terreno e não deve fazer desobstruções à superfície sem o seu acordo. Não danificar as sementeiras, muros ou obras existentes.
10. Quando se destapar alguma entrada de gruta deve-se voltar a tapá-la para evitar que pessoas ou animais nela se precipitem.
III. As entidades públicas ou privadas devem pautar a sua actuação dentro de parâmetros de preservação do ambiente natural das regiões cársicas.
a) Compete às entidades privadas (pedreiras, industrias, empreendimentos turísticos, etc.):
1. Não projectar obras que possam destruir ou comprometer a pureza do ambiente espeleológico, quer em profundidade quer nos aspectos da superfície que com eles se relacionam.
2. Submeter os seus projectos à aprovação das entidades oficiais competentes , de modo a garantir que da sua actividade não resultem danos para o meio subterrâneo.
3. Informar as associações espeleológicas e/ou entidades oficiais de todas as descobertas efectuadas evitando prosseguir com trabalhos que as obliterem ou danifiquem.
4. Executar as obras necessárias (fossas sépticas, canalizações de esgotos, etc.) para evitarem a poluição das grutas e regiões cársicas.
5. Quando se trate de explorações turísticas, estas devem: promover a execução dos estudos científicos convenientes preliminares à abertura ao público, ou após esta sempre que se verifique necessário; manter o ambiente subterrâneo natural, não o destruindo com obras de acesso nem lhe acrescentando artifícios de “embelezamento”; evitar a deteorização das grutas pelos visitantes (fumos, lixos, mutilações) ou pelo equipamento (iluminação, etc.); não ceder à tentação de uma exploração desenfreada sem controlo do número de visitantes, a ponto de se provocar a alteração do equilíbrio ecológico da gruta, que pode, em último caso, originar degradações irreversíveis.
b) Compete às entidades oficiais (Ministérios, ICN, autarquias, etc.):
1. Vigiar o cumprimento rigoroso das leis sobre protecção da natureza.
2. Promover acções de planeamento que evitem eventuais degradações do património espeleológico conhecido e que possibilitem o seu conhecimento completo.
3. Apoiar acções de esclarecimento dos problemas de protecção do mundo subterrâneo junto das populações, entidades privadas e entidades públicas de escalão inferior.
c) Compete aos espeleólogos e associações de espeleologia:
1. Alertar para tentativas de execução de empreendimentos que possam provocar a degradação ou poluição do ambiente cársico superficial e subterrâneo.
2. Evitar eventuais degradações esclarecendo os potenciais promotores, ou recorrendo para as entidades competentes quando aquela acção se mostre insuficiente e actuações mais energéticas se tornem necessárias.
3. Informar as associações de espeleologia e/ou entidades oficiais quando tiverem conhecimento de motivos que necessitem de protecção, pela sua beleza ou interesse científico.
4. Realizar acções que visem a protecção do mundo subterrâneo e a divulgação dos problemas de poluição e protecção.
[No tocante a códigos de ética ou de deontologia para espeleólogos ou sobre espeleologia será conveniente consultar o UIS Code of Ethics for Cave Exploration and Science in Foreign Countries (o Código de Ética para a Exploração de Cavernas e Ciência em Países Estrangeiros, da União Internacional de Espeleologia). Nesse âmbito, será igualmente interessante consultar o trabalho Guidelines for Cave and Karst Protection da IUCN World Commission on Protected Áreas.]
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