30/07/2008

Geo-conservação

Património geológico
Um contra-senso dos diabos

[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 222, 16 de Março de 1999]

© João Mariano (digitalização do jornal FA 1999)

As rochas, as grutas ou as paisagens têm direitos? Na teoria defende-se a sua protecção, na prática, o património geológico encontra-se completamente desprotegido do ponto de vista legal. A legislação é omissa e os atentados sucedem-se impunemente.

Portugal apresenta uma significativa “geodiversidade”, ou seja, é rico em geo-recursos culturais, sendo alguns de reconhecido valor supra-nacional (como o Cabo Mondego). No entanto, o património encontra-se completamente desprotegido do ponto de vista legal. Na legislação portuguesa os “geótopos” não têm qualquer existência formal, ao contrário do que acontece com os biótopos. O conceito de recurso geológico está contemplado, mas refere-se apenas a recursos económicos existentes na crusta terrestre: recursos hidrotermais ou geotérmicos, jazigos minerais ou águas de nascente. Os recursos geológicos de índole cultural, que são igualmente não renováveis e susceptíveis de aproveitamento económico, não são considerados. Particularmente vulneráveis por não serem abrangidos, nem na legislação ambiental, nem na legislação sobre exploração de recursos geológicos, os geo-recursos culturais estão à mercê da destruição, muitas vezes devido à ignorância ou à incúria, outras vezes intencionalmente, mas sempre de forma impune.
Ao contrário do que acontece com a arqueologia., em que é obrigatória a comunicação dos achados e a autorização para escavação, não existem normas no tocante à paleontologia ou à mineralogia, importantes disciplinas da geologia em que se verificam recolhas de materiais um pouco por todo o país sem qualquer impedimento legal. Enquanto o espólio arqueológico é propriedade do Estado, o património geológico é literalmente “de quem o apanhar”. A comunicação de achados geológicos, a autorização para recolha ou escavação, a posse ou venda de espécimes descobertos, nada está enquadrado por legislação específica. Esta é completamente omissa, deixando o caminho aberto à saída de espólio para o estrangeiro e/ou colecções particulares. Deste modo, o património geológico fica empobrecido e a comunidade científica privada de peças porventura importantes para o conhecimento da geo-história.

Conservar em tons de “terra”
Os espaços naturais que não estão abrangidos por legislação específica, caso dos geomonumentos ou geo-recursos culturais (em que se inserem jazidas de pegadas de dinossáurios, afloramentos, grutas,…) necessitam de urgente enquadramento legal. Reinvidicação que, não sendo nova, continua a aguardar melhores dias. Entretanto, já foram protegidas diversas ocorrências, ao abrigo da legislação existente. Conhecem-se pouco mais de uma dezena de “geótopos”, com estatuto de protecção, enquadrados em diferentes figuras de classificação: Penedo do Lexim, Monte de São Bartolomeu, Gruta do Zambujal, Arriba Fóssil da Costa da Caparica, Fonte da Benémola, Rocha da Pena, Campo de Lapiás da Granja dos Serrões, Campo de Lapiás de Negrais, Serra do Risco,… mas, a protecção efectiva, no terreno, tem-se revelado frequentemente ineficaz. Lembre-se as destruições a que têm estado sujeitos o Sítio Classificado da Gruta do Zambujal ou a Serra do Risco (em pleno Parque Natural da Arrábida), bem como o “abandono” em que se encontra a Rocha da Pena, tal como, outras áreas protegidas.
Um problema tão importante quanto a falta de legislação, valorização e dinamização das ocorrências. O Instituto de Conservação da Natureza (ICN) alega, infelizmente, crónica carência de meios e apesar do crescente interesse que a geologia tem suscitado nos últimos anos, essa instituição continua mais virada para a biosfera do que para a geosfera. Mas haja esperança, talvez o ICN deixe de ser tão “verde” e passe a apresentar um pouco mais de tons pétros.
Os investigadores são unânimes em defender a necessidade de legislação que enquadre o património geológico português. Os instrumentos legais actualmente em vigor sobre as áreas protegidas são demasiado vagos para abarcarem condignamente os testemunhos da história da Terra. Os investigadores defendem igualmente que o património geológico deve ser alvo de urgente inventariação e classificação, assim como de uma adequada divulgação junto do público. Muitos locais não estão inventariados e muito menos classificados, estando à mercê da destruição. Lembre-se o triste caso da Gruta da Senhora.
O desenvolvimento, divulgação e aplicação de normas legais sobre a conservação dos geo-recursos constituirá, certamente, o passo a dar no sentido de obviar a delapidação do património geológico. Até lá, convém que as leias existentes sejam aplicadas. Se tiver oportunidade de viajar de Estói a Moncarapacho verá que nem sempre o são. A ladear essa estrada algarvia encontrará entulho e lixo quanto baste. Um cartão de visita que em nada abona a região mais turística de Portugal. Se as pedras pudessem andar provavelmente fugiam para outras paragens, se falassem que diriam? E, já agora, as pedras têm direitos?

© Pedro Ludovino (digitalização do jornal FA 1999)

[30/07/2008: Portugal apresenta uma significativa “geodiversidade”. O professor Galopim de Carvalho costumava dizer, nas suas aulas de Geologia Geral, que Portugal tinha de tudo um pouco em termos geológicos. Em pequenino, é certo, mas tinha um pouco de tudo. Pois é precisamente neste “torrão” à beira-mar plantado que um Instituto da Conservação da Natureza (ICN) passou a acrescentar na sua denominação a “Biodiversidade”!... Portanto, tínhamos razão quando há uma década dizíamos que o ICN estava mais virado “para a biosfera do que para a geosfera”. Aliás, essa era uma constatação por demais fácil de fazer… não destoando do tratamento diferencial que era e, de certo modo, continua a ser dado entre a biologia e a geologia, com claro desfavorecimento da segunda. Fenómeno também bem expresso nos diversos níveis de ensino… Mas voltando ao assunto do ICN, nessa lógica (?) da tal “biodiversidade”, porque é que não se cria um Instituto de Conservação da Natureza, da Biodiversidade e da Geodiversidade (ICNBG). Que tal? Aqui fica o desafio. Pode ser que, numa praxis muito frequente neste nosso país, a próxima equipa gestora do ICNB queira mostrar trabalho, antes de mais, mudando o nome da entidade e…
Há dez anos atrás falava-se em geomonumentos ou ecomuseus, hoje está-se numa de geoparques! Dantes pensava-se em pequeno, à escala local, e agora em grande, a escala regional… Há uma década pensava-se na classificação de grutas, hoje pensa-se num geoparque para o Maciço Calcário Estremenho. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades?
Por último, gostaríamos de salientar a publicação do Decreto-Lei nº 142/2008, de 24 de Julho, sobre o regime jurídico da conservação da natureza e da biodiversidade. Face à total inexistência de qualquer referência ao património geológico na versão colocada em discussão pública em Março deste ano, a
ProGEO-Portugal elaborou e enviou ao Secretário de Estado do Ambiente um parecer com um conjunto alargado de sugestões e recomendações. Foi com grande satisfação que verificámos que a maior parte das sugestões apresentadas pela ProGEO foram aceites e incorporadas neste novo Decreto-Lei. “Isto significa que, pela primeira vez na legislação portuguesa de conservação da natureza, fica absolutamente garantida a protecção de geossítios e de património geológico. Surge ainda, pela primeira vez, referência aos geoparques. Só lamentamos que o conceito de geodiversidade não tenha sido, ainda, incorporado na legislação portuguesa. Sem dúvida que o novo DL 142/2008 vem colmatar uma lacuna que existia na legislação portuguesa relativamente ao património geológico, aproximando Portugal dos países mais desenvolvidos a este respeito. Resta-nos continuar a trabalhar para que a nova legislação venha a ser efectivamente implementada.” Foi assim que os responsáveis pela ProGeo - Miguel Ramalho, Mário Cachão e José Bilha - se pronunciaram um dia após a publicação da nova lei.
É caso para dizer: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Os processos geológicos são geralmente muito lentos, tão lentos que são medidos à escala do milhão de anos. Portanto, haja paciência até que os poderes públicos (e, já agora, os privados) entendam a importância da geo-conservação, a preservação do património geológico (para já não falar do património geo-espeleológico!). Mais vale tarde do que nunca...]

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