14/07/2008

Até ao fundo... III

A propósito das quedas inopinadas em algares, descritas por Pit Schubert, vem à colação as quedas que ocorrem no decurso da exploração de cavernas, mais precisamente sobre as quedas resultantes de largar a mão que controla o rapel, e continuar agarrado ao shunt com a outra mão! Schubert descreve uma queda bem diferente mas com mecanismos semelhantes. “Cayó hacia atrás por la boca de una dolina. Como una mano aún sujetaba la correa de la mochila y con la otra la linterna, no pudo agarrar-se a ningún sitio para evitar la caída. En una situación de peligro, los humanos no soltamos aquello que estemos sujetando (se trata de un reflejo).” Esta passagem de Seguridad y Riesgo lembrou-me um artigo incontornável escrito por J. Gusipiro, do Instituto Superior Técnico (IST), sobre um acidente noticiado no semanário Expresso (de 15 de Outubro de 1994) envolvendo um operário da construção civil: Como desgraçar a vida em 7.2 s ou haveria tempo para largar a corda?
A história conta-se rapidamente: o operário, pesando cerca de 80 kg, pretendeu trazer do 6º andar da obra para o piso térreo cerca de 225 kg de tijolos; dispunha de um barril e de uma roldana, pensou realizar a tarefa de um modo expedito, fazendo descer os tijolos dentro do barril por intermédio da roldana. Acontece que, quando iniciou a “expedita” operação de transporte, o operário agarrou fortemente a corda e, atendendo à diferença entre os pesos do barril carregado e do operário, foi rapidamente içado. No percurso, além de ir batendo nos andaimes, colidiu a meio caminho com o barril que descia, continuando apesar disso agarrado à corda. No momento em que o barril caiu no solo, o seu fundo despedaçou-se, libertando assim a carga de tijolos; simultaneamente o operário entalava os dedos na roldana. Como o barril vazio pesava perto de 25 kg, foi a vez do operário descer vertiginosamente, chocando outra vez, a meio da descida, com o barril que agora subia. Finalmente, o operário estatela-se no chão, em cima da confusão de tijolos partidos e, fortemente combalido, liberta a corda… despenhando-se o barril sobre ele!
Da descrição do acidente poderá surgir a ideia de que o encadeamento de circunstâncias poderia ter sido facilmente evitado. Para além da manobra nunca dever ter sido tentada, dada a desfavorável correlação de forças entre o barril carregado e o operário, parece óbvio que este deveria ter largado a corda. A questão “largar ou não largar a corda?” coloca-se imediatamente e, apesar da resposta aparentemente evidente, apresenta aspectos muito interessantes e talvez inesperados. Talvez fosse melhor questionar: seria humanamente possível largar a corda?
Inegável é o aspecto cómico do acidente, aspecto que motivou o artigo em causa como “excelente motivo para fazer uma aplicação interessante e divertida das leis da Física”. Com efeito, alguns cálculos simples permitem saber de forma objectiva, e para cada situação, se se deve (o que é diferente de “pode”) ou não optar por largar a corda. Nesse sentido, foi definido um modelo idealizado para descrever o problema, em que se desprezou os efeitos do atrito, a elasticidade da corda, o momento de inércia da roldana e a diminuição de velocidade durante as colisões entre andaimes, o barril e o operário. Também foram desprezadas as alturas do operário e do barril. Esta aproximação só se justificou pela maior clareza de exposição. As conclusões principais do estudo não são alteradas qualitativamente por esta hipótese e as coisas só podem piorar para o operário em termos quantitativos.
Para a análise do problema foram consideradas três situações distintas: numa primeira fase, deu-se a ascensão do operário e a descida do barril carregado; na segunda fase, ocorreu a subida do barril vazio e a descida do operário; por último, a terceira fase correspondeu à queda livre do barril vazio.
Na fase de ascensão, a primeira observação importante a destacar foi que entre o momento em que se inicia a descida do barril e a primeira colisão entre o operário e o barril (que será ao nível do 3º andar, ou seja, cerca de 9 metros) decorrem apenas 1.89 segundos! A constatação seguinte foi que o tempo disponível para evitar a colisão com o barril é bastante inferior a 1.89 segundos. Com efeito, se o operário conseguisse largar a corda ao fim um segundo já não lhe seria possível evitar a colisão com o barril.
Do estudo efectuado, ressalta que para o operário ter pelo menos meio segundo de tempo disponível para sair debaixo do barril, deveria largar a corda no máximo ao fim de sete décimos de segundo! Note-se que esta situação corresponderia ao operário largar a corda quando se encontra a uma altura de 1.24 metros e a uma queda de uma altura de 1.87 metros. Conclui-se que, no período ascendente, só seria uma boa opção largar a corda se ainda não tivessem passado mais de 0.7 segundo.
No período descendente, que principia 2.67 segundos após o início do acidente, constata-se que, se após a colisão com a roldana, os dedos triturados do infeliz operário não largarem a corda, este estatelar-se-á no solo ao fim de 2.64 segundos, com uma velocidade de 49 km/h. Pelo contrário, se os dedos se desprenderem da corda, o operário cairá com a aceleração da gravidade, atingindo o solo com uma velocidade de 68 km/h. É de louvar a “lucidez” demonstrada pelo operário, ao tomar a opção correcta de não largar a corda no período descendente.
Após a queda no solo, é evidente que o operário nunca deveria soltar a corda. Infelizmente o operário libertou a corda, permitindo assim a queda livre do barril, que o atingiu quando estão decorridos 7.24 s desde o início do acidente.
Desta forma, comprova-se que seria necessário tomar uma série de decisões em apenas 7.2 segundos. Mas tal não é possivel! A partir do momento em que o acidente é despoletado, o operário deixa de poder decidir, de pensar, racionalmente passando a actuar instintivamente. E foi nessa base que nunca largou a corda até parar definitivamente no chão. Depois, também naturalmente, largou a corda... Não tinha muito que decidir, agiu automaticamente. Facilmente se depreende que quem larga a mão que controla um rapel e permanece com a outra agarrada ao shunt não poderá libertá-la até que a queda pare. Ossos do ofício!

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