“- Olhe lá, comadre, não é intrujice?
- Intrujice! Ora essa, como podia isso ser…”
Aquilino Ribeiro, O romance da Raposa
Raposas! Mas porque é que se abordou esse tema? Não é este um blogue sobre espeleologia? Sim, é certo. Mas, que mais não fosse, falámos sobre a raposinha falecida no Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros porque tudo (ou quase tudo) se interrelaciona e, não nos esqueçamos, que essa espécie apresenta, com frequência, comportamentos trogloxenos, não é?
Quanto à “brincadeira” da Zorra Berradeira deveu-se ao facto de no mês passado ter tido oportunidade de apreciar, mais uma vez, o quadro de Carlos Porfírio sobre a dita e ter lido um livro altamente cativante sobre esse “mamífero”, grutas e muito mais: Lisboa Triunfante, da autoria de David Soares (Edições Saída de Emergência, 2008).
O livro em questão começa, na actualidade, em torno de uma pretensa fotografia de Aquilino Ribeiro…“Uma raposa que corria em duas patas.
Em duas patas!
Parecia uma raposa verdadeira. Era uma mistura de raposa com caricatura de raposa. Como os desenhos que ilustram as histórias para crianças. Tinha um sorriso rasgado e a língua dependurada.
Parecia um boneco. Parecia um fantoche.
A raposa que corria em duas patas parecia verdadeira.
Quase se podia ver o movimento dela na fotografia. Quase?”
Segue-se um curto mas impressionante episódio passado há 90 milhões de anos, para prosseguir a história no ano 21983 a.C., na região da actual Grande Lisboa, mais precisamente em Monsanto (Monte Santo) e Rio Seco. A chefe de uma tribo pré-histórica “trazia muitos anéis para disfarçar as articulações deformadas pela artrite e um dos colares apresentava um zoomorfo parecido com uma raposa. Usava com vaidade uma peruca feita com a juba de um leão das grutas por cima da cabeça rapada; o ocre com que pintava o rosto e os braços parecia carvão sob a Lua.” Cinco anos mais tarde (21978 a.C.) dá-se uma tragédia que potencia mudanças e descobertas…“Saíram e dirigiram-se a outra caverna.
Tens muitos sítios, disse o rapaz.
Há muitos caminhos debaixo da terra, respondeu o velho, mais que tu possas pensar.”
A obra é profícua em saltos temporais e espaciais…No ano de 1255 revela-se nova referência sobre grutas. “Se queres mesmo ir ter com o Homem Verde tens de sair da cidade e ir para Norte, mas não há nenhuma estrada que te leve ao sítio certo. Passas pelo Mosteiro de São Vicente de Fora e viras um pouco para poente assim que deixares o mosteiro para trás. Continuas a andar e verás uma grande penha. Contorna o sopé da montanha e encontrarás a entrada de uma gruta.”
E o mesmo se passa no ano de 1903. “Os bairros de Campo de Ourique e de Alcântara, e também a Junqueira e a Ajuda, começaram a ser examinados pelas equipas de pesquisa da Associação de Arqueólogos Portugueses fundada por Joaquim Possidónio da Silva e do Museu Nacional de Arqueologia do etnólogo José Leite de Vasconcelos. Toda a Rua Maria Pia, mais o Sertão, assim como a área do Rio Seco, possuíam furnas, cavernas e grutas pré-históricas inexploradas. Uma sepultura de Neandertal acabada de ser descoberta na Tapada da Ajuda, a juntar-se a outra, mais moderna, encontrada no mesmo local há vinte e quatro anos: os vestígios de pólenes, pigmentos e bric-à-brac de osso e pedra sugeriam que os ritos fúnebres eram elaborados e que aqueles antepassados já tinham religião. Aquilino lera-o no Diário de Notícias e ficara muito intrigado.”
Salientamos igualmente uma interessante referência no ano de 1905: “As jovens procuravam as moiras nas copas das árvores e nas lapas para que elas as tornassem mais belas - Moira ou Mater Deas: espécie de Parca pagã que nada tinha a ver com as “mulheres dos mouros”. Às vezes, saia de dentro das próprias árvores e dos penedos: como a moira transvertida na Nossa Senhora da Lapa, enfiteuta do Santuário rochoso que ficava atrás do colégio jesuíta para onde Aquilino Ribeiro fora estudar aos dez anos de idade.”
Por fim, destacamos no ano de 1742 as seguintes linhas sobre o que dizia a Beata de Óbidos: “Vossa Majestade… continuou Leal ‘…ela diz ver uma ilha… subterrânea!...’
D. João V inclinou-se para a frente e arregalou os olhos. Um burburinho andou à solta pela sala.
‘Uma ilha subterrânea? Onde?’
‘Aparentemente, debaixo de Lisboa. Vossa Majestade, ela…’ Calou-se e baixou a cabeça.”
E mais: “Quem passasse pelo Caracol da Penha de madrugada poderia pasmar-se com a passagem de um cortejo prodigioso; excepto os guinchos das rodas das carretas carregadas de vitualhas, armas e um barco desmontado com uma vela enrolada, o campo encontrava-se em silêncio. O grupo de catorze indivíduos avançou para fora do caminho e pisou a erva molhada pela humidade da noite; um pingo cor-de-rosa foi ejaculado pelo horizonte e vento espalhou-o, diluindo a tonalidade escura do céu.
(…) Contornaram com lentidão o sopé da montanha retirando os pedregulhos maiores do caminho para avançar com as carretas e encontraram a entrada da gruta. O franciscano olhou em volta e não viu vestígios de ocupação, nem cinzas ou pegadas: o local estava abandonado há muitos anos. Inclinou-se para espreitar e cheirou a humidade do interior da terra - musgo e poeira.
Uma espécie de brisa que cheirava a maresia vinha lá de dentro.
Seria a imaginação dele?
Sentiu a pele arrepiar-se
(…) ‘Os mouros moraram aqui’, disse. ‘Quando o exército de Afonso I conquistou Lisboa fugiram para Oriente. Este local foi o último refúgio deles.’ Apontou para a gruta e disse: ‘Esta é Covadonga! Símbolo da vitória cristã sobre o infiel: da Luz sobre a Treva - mas cuidado! Olhem uns pelos outros! Sabe-se lá se não chegámos, invés disso, à entrada do Inferno.’”
Portanto, já se perceberá o porquê de termos falado de uma raposa num blogue de espeleologia, não é? Mas fico por aqui…. Não podendo deixar de recomendar vivamente a leitura de Lisboa Triunfante. Depois de ter lido A Conspiração dos Antepassados e Lisboa Triunfante só me resta aguardar com bastante expectativa a próxima obra de David Soares.
A propósito já me esquecia de dizer que, em Lisboa Triunfante, para além do "mamífero" referido, também surge de forma persistente um "réptil"…
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