29/02/2008

O Carso Algarvio

O Carso Algarvio: Alguns aspectos de impacte ambiental

[Revista Ciência ● Série VI, nº 4, Maio 1993, pp. 35-40]

Desde o século passado que é salientada a importância de se efectuar um estudo do Algarve subterrâneo, sem que contudo tivesse sido alguma vez concretizado. A visão economicista que predomina nos dias de hoje, tendo como consequência a crescente deteriorização ambiental da região, faz com que esse estudo seja imperioso. Até quando nos podemos permitir a degradação rápida e irreversível de uma das regiões mais pitorescas do país?

Introdução
O Algarve apresenta diferenças marcantes que permitem a definição de três sub-regiões: a Serra, o Barrocal e o Litoral. A Serra algarvia, de relevos arredondados e vales profundos, é constituída essencialmente por xistos e grauvaques do Carbónico marinho, com excepção da zona ocidental correspondente à serra de Monchique - maciço alpino sub-vulcânico composto essencialmente por sienitos nefelícos. O Barrocal é constituído essencialmente por rochas carbonatadas mesozóicas, dispostas em elevações segundo alinhamentos este-oeste. O Litoral ou Beira-Mar, estreita faixa de aplanações a diversas cotas, é formado essencialmente por rochas detríticas cenozóicas.
A Orla Mesocenozóica Algarvia, a que corresponde o Baixo Algarve (Barrocal e Litoral) apresenta uma rede de drenagem superficial pouco desenvolvida, uma quase ausência de cursos de água de caudal permanente e a ocorrênci de perdas (sumidouros) e ganhos (exsurgência) (Esteves da Costa et al., 1985). A importância da drenagem criptorreica em detrimento da drenagem superficial, associada a uma geomorfologia peculiar, que surge essencialmente no Barrocal (campos de lapiás, dolinas, uvalas, polges, canhões, algares, etc.), permitir-nos-á falar em Carso Algarvio.
Localização do Algarve e mapa da região com a distribuição das subregiões algarvias, de Norte para Sul: Serra, Barrocal (às riscas) e Litoral.

Os geógrafos do final do século passado deram o nome de “karst” às regiões onde a hidrologia subterrânea (hidrogeologia) e os fenómenos de dissolução desempenharam um papel preponderante (Jean Nicod, 1972). Esse termo entrou no vocabulário científico a partir da obra Die Karstphänomen de Jovan Čvijić (1893), contudo, e apesar de ser cómoda a existência de um único termo de utilização internacional, é de uso generalizado a designação “carso” como equivalente português.

Relevo zoomórfico no megalapiás da vertente SE do Cerro da Cabeça (Cerro da Cabeça @ P. Cuiça, 1992).


O carso superficial ou epígeo
A partir da década de 60, o Algarve atravessou um rápido desenvolvimento urbano e agrícola, guiado e implementado pela indústria turística que ai surgiu, reactivado pela recente adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Esse desenvolvimento teve como consequência uma degradação ambiental e paisagística, afectando sobretudo, e de início, o Litoral também atingiu o Barrocal.
Uma das mais belas zonas do carso algarvio que se encontra ameaçada pela intervenção humana é a Rocha da Pena (480 m). Trata-se do único relevo verdadeiramente vigoroso existente no Algarve, carso alcandorado, alongado no sentido este-oeste e em cujo cimo se encontram cerca de uma dezena de dolinas bem delineadas (Crispim, 1982), cavernas (Poço dos Mouros e Buraco da Caldeirinha), vestígios arqueológicos, vegetação endémica e uma avifauna de grande interesse (sendo de destacar a presença de noitibós e de águias).
Vistas panorâmicas da Rocha da Pena (480 m), o relevo mais vigoroso da Orla Mesocenozíca Algarvia (adaptado de M. Feio, 1951).

A estrada que leva directamente ao topo dessa elevação, assim como a abertura de um bar na vertente sul, contribuem para a afluência de inúmeras pessoas e veículos causando diversas acções nefastas na área referida. Além disso, a existência de diversos projectos de aproveitamento da Rocha da Pena para fins recreativos e económicos, como a construção de infraestruturas para a prática de asa delta ou a criação de uma escola de escalada desportiva, revelam a pressões actuais no sentido de degradar talvez a zona mais pitoresca da região algarvia.
Outra situação, que por ser pontual não deixa contudo de ser importante, é a localização de pedreiras em locais de grande interesse geoespeleológico (a titulo de exemplo citam-se as pedreiras da Quinta do Escarpão e do Cerro da Cabeça).

O carso subterrâneo ou hipógeo
O carso algarvio apresenta em certas áreas inúmeras grutas. Essas formações encontram-se sujeitas a uma degradação, desde há anos, devido a incursões antrópicas, sendo fundamental a sua protecção.
O primeiro homem que chamou a atenção para importância do estudo das grutas algarvias - apesar de se circunscrever apenas à arqueologia - foi Estácio da Veiga que, tendo sido encarregue em 1877, pelo governo de então, do estudo geral das antiguidades do Algarve, propôs que fossem, antes de mais, estudadas as cavernas. O governo, temendo a demora e os custos que iriam comportar os trabalhos, idênticos aos que tinham sido efectuados por Schemerling e Dupont nas grutas da Bélgica, rejeitou a proposta. Uma enorme lacuna no conhecimento do Algarve subterrâneo ficou por desvendar!Desde a proposta de Estácio da Veiga até aos nossos dias, o estudo das grutas algarvias tem sido feito de uma forma inconstante e de certo modo improdutiva, à excepção de certos trabalhos pontuais realizados pela Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE) e por alguns cientistas de diversos ramos do saber - essencialmente geólogos, geofísicos, geógrafos, biólogos e arqueólogos. De entre os trabalhos realizados será de destacar, por ser o único a abordar a globalidade do Carso algarvio, o de J. A. Crispim, Morfologia Cársica do Algarve, publicado em 1982.
O surgimento da espeleologia em Portugal (podemos considerar o seu início em 1948) pouco contribuiu para o conhecimento e estudo das cavidades algarvias por parte dos grupos que se criaram nessa região, devido essencialmente à ausência de um plano regional de trabalho e à falta de cooperação dos grupos, fracos em recursos económicos e quadros. A falta de cursos de espeleologia de nível académico, aliada a uma inexistência de legislação que foque as grutas do nosso país, implica que o baixo nível científico da generalidade dos espeleólogos provoque uma degradação das grutas. Uma mesma gruta é várias vezes visitada e “estudada” por diversos grupos de espeleologia que efectuam, em geral, a inventariação da cavidade, a qual difere em geral de grupo para grupo. Não raras vezes, devido à inconstância existencial desses grupos, esses inventários perdem-se ou estão inacessíveis à consulta, porque encerrados no olvideo das gavetas das suas sedes.
A espeleologia (termo criado por E. Riviére, em 1890, do grego antigo σπήλαιον ELL = gruta POR e λόγοσ ELL = tratado POR) sendo a ciência que se “consagra ao estudo das cavernas, da sua génese e da sua evolução, do meio físico que ela representa, do seu povoamento biológico actual ou passado, assim como dos meios ou das técnicas que são próprias ao seu estudo” (Gèze, 1965), foi desacreditada em certos meios científicos por esse nome estar associado à simples exploração e visita de cavernas. À componente desportiva da espeleologia que, sem dúvida, desempenha um papel importante e será um atractivo para aqueles que gostam de aventura, junta-se a componente científica, complexa e vasta, porque multidisciplinar, que exige uma bagagem extensa, nomeadamente no que concerne às ciências geológicas, da parte de quem se lhe dedica. Martel, que é considerado o fundador da espeleologia (1888) e foi um activo explorador de cavernas em toda a Europa, estabelece, desde logo, a vocação científica desse ramo do saber ao defini-lo como sendo “a História natural das cavernas”.
Se o baixo nível científico da generalidade dos “espeleólogos” em Portugal é incontestável, também é certo que os amantes da espeleologia podem realizar um trabalho proveitoso em prole dessa ciência. Os trabalhos de inventariação das formas endocársicas da região algarvia que são de extrema importância a diversos níveis, nomeadamente no respeitante a actuações de preservação ambiental, é uma área em que esses amantes do mundo subterrâneo poderiam desempenhar um papel importante.
A inventariação consiste essencialmente no nome, localização, topografia da cavidade e descrições sumárias de ordem geológica, hidrológica, climatológica, biológica, arqueológica ou outra. Trabalho de grande utilidade para o conhecimento do endocarso da região, só desempenhará a sua função se, por um lado, for realizado em cooperação entre grupos que sigam um mesmo método de trabalho, tentando distribuir os seus efectivos pelas diversas áreas do Barrocal de forma a abarcarem a totalidade do carso e, se por outro, os trabalhos forem publicados ou passíveis de consulta. No entanto, os trabalhos de inventariação efectuados por parte desses grupos terão, de certa forma, de se limitar a aspectos de toponímia, localização e topografia de cavidades.
Não se deverão efectuar recolhas de seres vivos, sob o pretexto de realização de um estudo bioespeleológico, pois a fauna cavernícola é pouco abundante, tendo um menor número de crias do que as formas epígeas análogas. O equilíbrio ecológico desses ecossistemas é extremamente vulnerável a qualquer perturbação exterior, sendo a captura de animais cavernícolas reservada a estudiosos especializados no assunto, caso contrário destruir-se-ão, em breve, esses seres ainda pouco conhecidos. Entre os animais que têm sido perturbados pelas incursões antrópicas a grutas contam-se os morcegos, grupo faunístico que tem diminuído de número, entre outros factores, devido a serem perturbados durante as épocas de criação (Março a Maio) e hibernação (Novembro a Março).
Do mesmo modo, não são admissíveis os “estudos arqueológicos”, com mudança de posição ou recolha de objectos, sondagens ou remobilizações do solo da cavidade, por provocar a alteração da estratigrafia dos materiais, levando à perda do contexto histórico aí existente.
Durante os trabalhos de prospecção, ao ser “descoberta” uma nova gruta, dever-se-á ter a prudência suficiente na sua exploração, evitando pisar eventuais vestígios existentes no solo da cavidade.
Não esqueçamos também que as cavernas algarvias poderão oferecer agradáveis surpresas no tocante a pinturas e gravuras rupestres, quando forem examinadas minuciosamente as paredes das suas galerias e salas, em especial as mais interiores ou de difícil acesso (M. Farinha dos Santos, 1985). A presença em algumas grutas do Algarve de material neo-eneolítico ou calcolítico (Gruta dos Matos, Gruta da Nora, o Abismo, Ladroeiras, etc.), de material de ocupação árabe (Ibne Ammar, Caverna dos Mouros, etc.) e a relativa abundância da estações neolíticas, requer que se façam os estudos arqueológicos necessários ao bom conhecimento da ocupação das cavernas da província em tempos remotos. No entanto, esses estudos terão de ser efectuados por pessoas devidamente habilitadas. Depósitos calcíticos ("medusas") da sala de entrada da Ladroeira Pequena (Cerro da Cabeça) (Ladroeira Pequena @ P. Cuiça, 1981).
Não se devem levar como “recordação” ou para colecção concreções (estalactites e estalagmites, etc.), mesmo que estejam caídas no solo, ou sequer alterar a disposição de blocos do interior da cavidade, a menos que tal seja necessário para continuar a progressão.Depois de feita a inventariação, a gruta deve ser visitada apenas quando se realizar algum trabalho de índole espeleológica, caso contrário não se deverão efectuar incursões de forma a evitar degradações desnecessárias.
Se alguns espeleólogos degradam as grutas sem intenção de o fazerem, a acção dos “curiosos” é muito mais grave e por vezes propositada: a obstrução de cavidades por meio de blocos; o arrancar de concreções; a perturbação e mesmo a morte de morcegos; os graffiti nas paredes; o lixo deitado ou deixado nas grutas - são alguns dos factores que mais degradam as formas endocársicas algarvias e os ecossistemas associados.
A afluência, ao longo dos anos, de grande número de pessoas a determinadas grutas - a que não estará alheio o facto de virem assinaladas em alguns mapas e guias turísticos - tem vindo a degradá-las de maneira rápida e irreversível. Sendo algumas delas locais de hibernação e/ou criação de morcegos (Gruta de Ibne Ammar, Igrejinha dos Soidos, Salustreiras, Arrifes, etc.) chegam a ser visitadas por centenas de pessoas durante ano (como é o caso das Salustreias), advindo daí graves prejuízos para a população de quirópteros.
Concreções no tecto da sala terminal da Caverna do Poço dos Mouros (Rocha da Pena) (Poço dos Mouros @P. Cuiça, 1987).

A situação de ameaça de extinção em que se encontram muitas espécies de morcegos, a nível europeu, torna imperativa a defesa de colónias contra as perturbações das suas grutas-abrigo mais importantes e representativas. O desaparecimento de uma colónia não é só grave para o património faunístico, como tem consequências, difíceis de avaliar, nos ecossistemas da região e das próprias grutas, onde se poderá verificar o colapso da comunidade de invertebrados cavernícolas. O guano de morcego que se acumula no interior das cavernas é o suporte, de uma fauna particular; podendo-se mesmo considerar uma verdadeira biocenose do guano (guanóbios e guanófilos).
A fim de proteger as populações de morcegos e as biocenoses do guano a elas associadas verifica-se a necessidade de regulamentar o acesso de pessoas às grutas de maior importância como abrigos de morcegos, estratégia que tem tido sucesso noutros países (Tuttle, 1986), ou mesmo proceder à colocação de gradeamentos que não prejudiquem a entrada e saída de morcegos e não alterem o clima da caverna, como sujere J. Palmeirim.
A situação actual do endocarso algarvio, leva-nos a afirmar que um conjunto de cavidades estão em risco de se tornarem “galerias estéreis”; entre elas, listamos as que se encontram mais ameaçadas: Caverna dos Mouros (Lapa da Pena, Poço dos Mouros, Algar dos Mouros), Gruta de Ibne Ammar (Gruta de Estombar), Igrejinha dos Soidos (Igejinha dos Mouros), Salustreira Grande (Solestreira Grande), Salustreira Pequena (Solestreira Pequena) e grutas do Cerro da Cabeça (Gruta da Senhora, Ladroeiras, Abismos, etc.).
Um dos casos de características mais graves é o que se verifica no Cerro da Cabeça (249 m). Nesse cerro localiza-se um megalapiás onde dominam os grandes dorsos de superfícies arredondadas, relevos cónicos e pedunculados, torres, blocos isolados, etc., distribuindo-se densamente em toda a elevação (Crispim, 1982).
Formas de relevo do megalapiás do Cerro da Cabeça: 1. bloco residual, 2. dorso, 3. fenda, 4. torre, 5. pia, 6. agulha, 7. algar, 8. arco, 9. corredor e 10. relevo pedunculado (adaptado de J. A. Crispim, 1982).

As torres e blocos estão separados por fendas estreitas, entulhadas de calhaus, que por vezes formam pias de fundo rochoso cheio de blocos ou, então, corredores (bogaz). Frequentemente, as pias escavadas no lapiás prolongam-se em profundidade por algares, geralmente de boca estreita e obstruídos por blocos (Algar do Próximo, etc.), mas por vezes de dimensões suficientemente grandes formando profundas cavidades (Algar Medusa, etc.). No Cerro da Cabeça localizam-se as formas endocársicas mais profundas de que se tem conhecimento na região algarvia (Algar Maxila, Algar Medusa, 056 GEAM, etc.). Algar Medusa, um dos mais profundos existentes no Algarve (Cerro da Cabeça) (@ topo NECCA - Núcleo de Espeleologia do Circulo Cultural do Algarve, 1984).

Consta que o Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve (CEEAA), extinto há alguns anos, terá efectuado a inventariação de mais de uma centena de cavidades nesse cerro, o que só por si evidencia a importância do mesmo. O elevado estado de degradação em que se encontram as grutas do Cerro da Cabeça, a situação intolerável que se verifica na Gruta da Senhora (cujos trabalhos para a sua abertura ao turismo, com verbas da CE, estão parados e tiveram consequências negativas quer para a cavidade quer para o exterior), assim como a acção da pedreira situada no flanco SE dessa elevação, perspectivam a perda de uma das mais belas zonas cársicas do Algarve.
António Varela e Pedro Cuiça no Algar dos 60 m (Cerro da Cabeça) (Algar dos 60 Metros @ F. Perna, 1985).

Em jeito de conclusão
Face à realidade actual em que as palavras de ordem são “o progrésse, a requésa e o desenvolviménte” resta-nos apenas dar um esboço do que achamos ser o reverso da medalha, ou seja, a degradação ambiental e do tradicional. Para os que pensam ser esta uma visão pessimista acerca do presente-futuro da região algarvia (o que poderíamos generalizar talvez sem graves erros à aldeia global, viulgo Terra), uma visão contra-evolutiva, e portanto decadente, seja permitido afirmar-se que, pelos vistos, existem diversos conceitos de evolução. Talvez ao fim e ao cabo estejamos a abordar questões de gosto e, pelo que se diz, há gostos para tudo. Talvez haja que prefira a densidade e a consistência do monóxido de carbono à leveza do ar da montanha, uma paisagem de tubificações metálicas ou uma selva de betão à beleza naturae… sabe-se lá!

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