Morcegos: Perigo de Extinção
Fotografia: P. Casaleiro
Está a realizar-se, desde Janeiro de 1987, estudos base para a preparação de um plano de protecção dos morcegos cavernícolas de Portugal. Estudos esses coordenados pelo professor Jorge M. Palmeirim do Departamento de Zoologia e Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em estreita colaboração com Luísa Rodrigues do Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza.
Os estudos em causa, não sendo os primeiros do género realizados no nosso país, são no entanto de manifesta importância, na medida em que visam um maior conhecimento da biologia populacional dos morcegos cavernícolas com vista à sua protecção.
Muita gente poderá perguntar qual o interesse do estudo dos morcegos, esses animais tão repelentes e inúteis. Esse posicionamento face aos quirópteros*, não nos admira pois não obstante os morcegos serem de grande utilidade para o Homem têm sido, desde há muito, objecto das mais cruéis e das mais inexplicáveis perseguições.
Moisés colocava-os na categoria de animais impuros, cuja carne o povo de Deus não devia tocar. A antiguidade pagã foi procurar neles o tipo repugnante das Harpias**. Na Idade Média acreditou-se que os morcegos personificavam o espírito do mal e desde logo foram considerados companheiros inseparáveis de bruxas, sendo mesmo denominados, naqueles tempos, de “pássaros de bruxas”. Quem não associa os morcegos aos filmes de terror do Conde Drácula que se transforma nessas “estranhas criaturas” e suga o sangue às donzelas? Ou às asas de morcego tradicionalmente presentes nas representações do diabo?
Se a visão que os antigos possuíam acerca dos morcegos se pode compreender face às características do tipo de conhecimento da época é contudo inconcebível que, nos nossos dias, ainda maltratem esses animais por simples desconhecimento, ou ainda que imperem ideias do tipo “os morcegos são ratos voadores”, concepção que se reflecte em várias línguas. Por exemplo, no México são por vezes apelidados de “ratones voladores”, na Alemanha são os operacionais “fledermaus” (ratos voadores) e em França “chauve-sauris” (ratos carecas).
*Ordem de mamíferos a que pertencem os morcegos.
**As harpias são génios alados da geração pré-olímpica, filhas de Taumante e Electra, em número de duas (Aelo, “Borrasca”, e Océpete, “Voa Depressa”). Seres monstruosos e ferozes, eles personificavam as tempestades e a morte, capazes de atormentar os humanos com as suas longas garras e rostos medonhos.
Os Chiroptera
Os quiróptetos, vulgarmente denominados “morcegos”, são os únicos mamíferos voadores, encontrando-se em todas as regiões do globo com excepção das zonas frias e certas ilhas. Ao falarmos acerca dessas peculiares criaturas não nos podemos esquecer que representam cerca de um quarto dos mamíferos terrestres, havendo inúmeras características e hábitos entre as cerca de mil espécies conhecidas.
As suas asas são formadas por uma membrana alar (patágio) cujos suportes consistem nos braços e cinco longos dedos. Possuem uma protecção em forma de quilha no esterno, à qual estão ligados os músculos com os quais bate as asas. Tal como as aves apresentam várias modificações destinadas a diminuir o peso do corpo: os ossos da cauda adelgaçaram-se até se tornarem finos como palha e apesar de possuírem dentes, a sua cabeça é curta e muitas vezes têm o nariz achatado (por ex. Rhinolophus), para evitar que o focinho pese no ar.
Actualmente, todos os morcegos são nocturnos e provavelmente sempre o foram, pois as aves dominavam os ares durante o dia. Para voar à noite os morcegos tiveram de desenvolver um sistema de navegação através de ultra-sons, um método ultra-sofisticado de localização por meio de eco, semelhante em princípio ao radar. No entanto, o radar utiliza ondas electromagnéticas de rádio enquanto o sonar usa ondas sonoras com uma frequência bastante acima do limite auditivo do ouvido humano. Um morcego quando em voo, guiado pelo sonar, utiliza sons da ordem das 50 a 200 mil vibrações por segundo, emitidas em estalitos breves de 20 a 30 vezes por segundo. O ouvido é tão apurado e sensível que ele pode, a partir do eco que cada sinal produz, determinar a posição não apenas dos obstáculos, como também da sua presa, que pode estar a voar a alta velocidade.
A maioria dos morcegos recebe o eco de um sinal antes de emitir o seguinte. Quanto mais próximo o morcego estiver de um objecto, menos tempo demora o eco, de modo que ele pode aumentar o número de sinais emitidos ao sentir que se aproxima da presa e persegui-la com crescente exactidão ao acercar-se para o ataque.
O sucesso na caça, porém pode significar uma cegueira momentânea, pois se a boca estiver ocupada a mastigar um insecto, o morcego não pode usar o sonar de modo normal. Algumas espécies, no entanto, contornaram essa dificuldade emitindo sinais pelo nariz, pelo que passaram a apresentar uma variedade de grotescas excrescências nasais que servem para concentrar a amplitude do som emitido agindo como megafones. Os ecos sendo detectados pelas orelhas obrigaram a que estas também adquirissem uma estrutura elaborada e complexa; possuem na base do bordo externo um lóbulo mais ou menos acentuado que se designa por “antitrago” e mostram com frequência, saindo do seu interior, um apêndice cutâneo de forma e tamanho variáveis a que se dá o nome de “trago”, sendo capazes de em certas circunstâncias se torcerem para melhor capturarem os sinais reflectidos. A aparência de muitos morcegos é, por essas razões, mais grotesca que qualquer imagem do demónio tirada de um manuscrito medieval; no entanto, essas características morfológicas não têm qualquer significado mítico ou religioso, sendo só e apenas “apetrechos” do seu precioso e evoluído equipamento de voo.
Ao contrário da maioria dos mamíferos, os morcegos não possuem uma temperatura corporal constante. Quando em voo podem apresentar temperaturas da ordem dos 42ºC, contudo após o poiso a temperatura do corpo desce rapidamente até aos 10ºC no período de digestão, para em seguida se manter intermédia entre os dois valores.
Como no Inverno o número de insectos decresce consideravelmente os morcegos insectívoros hibernam de Outubro a Abril, tendo de armazenar alimentos durante o Verão e Outono para chegar ao início do período de letargia com cerca de três vezes mais peso que o habitual. Durante a hibernação a temperatura corporal e ritmo cardíaco dos quirópteros decrescem até valores extremamente baixos. No entanto, o seu “profundo sono” pode ser interrompido, vendo-se ocasionalmente indivíduos voando, nos dias de bom tempo de Inverno, em busca de insectos ou então mudando-se para grutas-abrigo de temperatura mais agradável. Os voos de Inverno são, contudo, uma aventura perigosa visto que os morcegos gastarem energias essenciais à permanência em hibernação, com consequente diminuição de peso, arriscam-se a morrer por falta de energia.
Apesar da maioria dos morcegos se alimentar de insectos, os quirópteros possuem um vasto regime alimentar podendo, segundo as espécies, serem: insectívoros, nectaríferos e poliníferos, frugívoros, carnívoros, piscívoros ou hematófagos. Alguns descobriram que o néctar e o pólen são muito nutritivoros (por ex. Eidolom helvum) e aperfeiçoaram a sua técnica de voo de modo a poderem pairar no ar, como os beija-flores, recolhendo o néctar que extraem com a língua fina e comprida. Algumas plantas utilizam mesmo os morcegos como agentes de polinização, do mesmo modo que um grande número se serve dos insectos para o mesmo fim. Alguns cactos, por exemplo, só abrem à noite as suas grandes flores, resistentes e descoradas, pois no escuro as cores não têm significado. O perfume que exalam é, porém, intenso e as pétalas projectam-se bem acima da armadura de espinhos do caule, permitindo que os morcegos se aproximem sem ferirem as membranas alares (patágios).
Os morcegos de maiores dimensões são frugívoros (por ex. Pteropus giganteus). Conhecidos também como “raposas-voadoras”, receberam essa designação não só pelo seu tamanho - as asas podem atingir por vezes 1.5 m de envergadura - mas também pelo seu pêlo castanho-avermelhado e o seu focinho semelhante ao das raposas. Possuem olhos grandes e orelhas pequenas, não utilizando o sonar para o voo. Não vivem em grutas, como a maioria dos seus parentes insectívoros, mas no cimo das árvores, onde se penduram em grupos numerosos e ruidosos. A sua silhueta é diferente da de uma ave, pois não apresentam uma cauda projectada do corpo e o seu voo é bastante diferente do voo quebrado e difícil dos morcegos insectívoros; as suas asas batem regularmente mantendo-se numa trajectória firme e determinada pelo seu nocturno.
Outros morcegos alimentam-se de carne (por ex. Megaderma lyrra). Alguns atacam aves nos seus poleiros, rãs, lagartos pequenos e invertebrados, havendo mesmo notícia de uma espécie que se alimenta de morcegos. Também existem morcegos que se alimentam de peixes (por ex. Noctílio leporinus). Ao entardecer percorrem as lagoas, lagos e mesmo mares em busca de presas, as quais capturam com o auxílio das suas garras em forma de gancho e matam com uma poderosa dentada.
Os morcegos hematófagos (por ex. Desmodus rotundus), normalmente conhecidos por “morcegos-vampiros”, atingiram um elevado grau de especialização. Os seus dentes da frente têm a forma de duas navalhas triangulares e a sua saliva contém uma substância anticoagulante, de modo que quando as suas vítimas começam a sangrar o sangue continue a fluir durante o tempo necessário, antes que se forme um coágulo. Normalmente os morcegos-vampiros escolhem mamíferos adormecidos, vacas ou mesmo homens, instalando-se ao lado do ferimento previamente produzido e lambem o sangue até ficarem saciados.
Os morcegos cavernícolas de Portugal
As 24 espécies de morcegos que se conhecem no nosso país (Palmeirim, em publ.), mais de um terço dos mamíferos da nossa fauna, são na totalidade insectívoros. Pouco se conhece acerca das espécies Myotis mystacinus [Morcego-de-Bigodes], Nyctalus lasiopterus [Morcego-Arborícola-Grande], Nyctalus noctula [Morcego-Arborícola], Pipistrellus nathusii [Morcego-de-Nathusius], Pipistrellus savii [Morcego-de-Savi] e Myotis bechsteinii [Morcego-de-Bechstein] porque são bastante raras não sendo vistas no nosso território há já alguns anos. As Barbastella barbastellus [Morcego-Negro], Plecotus auritus [Morcego-Orelhudo-Castanho], Nyctalus leisleri [Morcego-Arborícola-Pequeno], Myotis nattereri [Morcego-de-Franja] e Myotis emarginatus [Morcego-Lanudo] são localizadas pontualmente e a Myotis bechsteinii [Morcego-de-Bechstein] é muito rara. Apesar da Tadarida teniotis [Morcego-Rabudo] se encontrar em pequeno número pensa-se, contudo, que seja uma espécie mais comum do que os dados de que se dispõe levariam à primeira vista a pensar. As espécies mais abundantes são a Pipistrellus pipistrellus [Morcego-Anão], Pipistrellus kuhlii [Morcego-de-Khul], Plecotus austriacus [Morcego-Orelhudo-Cinzento], Myotis daubentonii [Morcego-de-Água] e Eptesicus serotinus [Morcego-Hortelão]. Contudo também se encontra no nosso país consideráveis populações de Rhinolophus ferrumequinum [Morcego-de-Ferradura-Grande], Rhinolophus hipposideros [Morcego-de-Ferradura-Pequeno], Rhinolophus mehelyi [Morcego-de-Ferradura-Mourisco], Myotis myotis [Morcego-Rato-Grande], Myotis blythii [Morcego-de-Brandt] e Miniopterus schereibersii [Morcego-de-Peluche].
A fauna de morcegos da Península Ibérica parece não incluir nenhumas formas endémicas, o que contrasta com o alto grau de endemismo observável nas formas não voadoras dos grupos de mamíferos da península (Almaça, 1971). Além disso, a relativa riqueza da fauna de quirópteros de Portugal reflecte uma falta de isolamento da Península Ibérica em relação ao número de espécies ao caminharmos de nordeste da península para sudoeste, ou seja, não ocorre efeito peninsular nas populações de morcegos ibéricos.
Tal como noutros países europeus, onde existem morcegos, a fauna de quirópteros de Portugal é dominada por espécies palearticas. Contudo a não existência de espécies setentrionais, como a Vespertilio murinus [Morcego-Bicolor] e a Eptisicus nilssoni [Morcego-Hortelão-do-Norte], e a presença de muitas espécies meridionais dá à fauna de quirópteros do nosso país um carácter marcadamente meridional.
Apesar das relativamente pequenas proporções do nosso território verifica-se um claro gradiente na composição da fauna de morcegos, de norte para sul, e da relativa abundância das várias espécies; é assim que certas espécies estão representadas em pequeno número em certas regiões tornando-se mais representativas ao caminharmos para sul ou para norte.
Cerca de metade das 24 espécies de morcegos conhecidas em Portugal utilizam grutas naturais como abrigo, entre elas destacam-se duas famílias que pela sua frequência requerem uma particular atenção: a Vespertilionidae e a Rhinolophidae. A primeira comporta em Portugal cinco géneros e 18 espécies. Das 18 espécies a Myotis myotis e a Myotis blythii são aquelas que em maior número ocorrem nas nossas grutas, formando aí grandes colónias (por vezes com milhares de indivíduos), quer na época de reprodução, que se prolonga entre os meses de Março a Maio, quer na época fria quando estão em período de hibernação.
No que respeita à família Rhinolophidae são quatro as espécies que estão descritas em Portugal; tal como as espécies da família anteriormente referida formam colónias em grutas, no entanto, em menor número do que essas. Normalmente agrupam-se em pequenos “bandos” de três a seis indivíduos, encontrando-se muitas vezes apenas um a dois indivíduos o que acontece frequentemente com os machos (Palmeirim, 1985). Por esse motivo são espécies mais vulneráveis, estando mesmo uma delas - Rhinolophus ferrumequinum - citada no “Red Book” (publicação que menciona as espécies de morcegos ameaçadas de extinção).
Extinção?
Durante as últimas décadas as populações de morcegos cavernícolas das regiões temperadas têm, em geral, vindo a diminui. Em Portugal não se possuem informações detalhadas sobre as populações de morcegos do nosso território, ao contrário do que sucede em muitos outros países da Europa, não tendo sido realizados trabalhos que permitam quantificar os reais decréscimos do número de quirópteros. No entanto, as observações, mais ou menos sistematizadas, que se têm vindo a empreender ao longo dos anos, sobretudo por parte de investigadores ligados ao Departamento de Antropologia e Zoologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, dão quase a “certeza” de que os seus efectivos têm vindo a decrescer consideravelmente.
As causas da diminuição das populações de morcegos são inúmeras e variadas, contudo, no nosso país, parecem ser três os factores de principal importância e responsabilidade no decréscimo dessas populações. O primeiro factor, o uso e abuso de pesticidas na agricultura, afecta os morcegos na medida em que além de provocarem uma diminuição daquilo de que estes se alimentam, faz com que ao alimentarem-se de insectos contaminados acumulem nos seus tecidos quantidades de organocloretos que, se não forem letais, são com certeza prejudiciais ao seu normal desenvolvimento.
Usualmente no topo das pirâmides alimentares e necessitando de grandes quantidades de alimento, os morcegos insectívoros facilmente acumulam organocloretos (Esher, Wolfe & Koch, 1980), por exemplo, nos Estados Unidos encontram-se altas concentrações de resíduos de pesticidas em morcegos mortos analizados pelo Nature Conservancy’s Monks Wool Experimental Station. Experiências laboratoriais vieram demonstrar que quantidades similares às encontradas nesses morcegos são suficientes para lhe causar a morte.
O paradoxal de toda esta história é que a protecção dos quirópteros pode contribuir para a diminuição das populações de determinados insectos prejudiciais à agricultura. Os morcegos tendo como base alimentar inúmeras espécies de insectos, particularmente borboletas nocturnas (cujos estados larvares se tornam, por vezes, pragas catastróficas para certas culturas) podem eliminar algumas toneladas desses artrópodes numa só noite. Brosset e Deboutteville (1986) referem que um morcego consome diariamente um número de insectos aproximadamente igual ao seu peso, contudo o homem continua a usar os pesticidas em vez da luta biológica. De facto, existem numerosos pesticidas destinados a combater as pragas que afectam a agricultura, no entanto, os seus efeitos sobre os ecossistemas são de difícil controlo e, por vezes, catastróficos, podendo mesmo alguns dos constituintes desses produtos chegarem às populações humanas, através da sua alimentação, causando-lhes eventuais prejuízos de saúde.
O segundo factor, destruição do habitat, vem na sequência de uma procura cada vez maior de terrenos de cultivo ou florestação, urbanização, empreendimentos turísticos ou outros, sem que para tal se faça um ordenamento do território. Sob o baluarte do desenvolvimento e do progresso todos os dias se rouba mais um pouco à natureza com vista à implantação de sistemas artificiais, obtendo-se quase sempre e infelizmente por soluções fáceis ou manifestos de ignorância. Assim se assiste à redução de muitos habitats naturais e roturas nos ecossistemas respectivos, com consequências directas nas numerosas espécies que ai vivem.
A redução da área de muitos habitats está certamente a afectar a população de quirópteros. A destruição de abrigos como grutas, minas, casas abandonadas ou em ruínas e troncos de árvores envelhecidas, assim como a destruição dos locais de criação dos meios de subsistência dos morcegos, faz com que destes só os mais aptos ganhem a luta pela vida, ficando para trás os fracos, doentes ou mal alimentados.
O terceiro, e último factor, a perturbação das colónias de quirópteros cavernícolas por parte de visitantes de ocasião e “espeleólogos” desinformados, é provavelmente o factor mais importante de declínio das populações de morcegos. Sabendo-se que as populações de quirópteros são particularmente frágeis devido à sua baixa taxa de reprodução, tendo em geral cada fêmea uma cria por ano e raras vezes duas crias, é licito pensar que as populações que tenham sido numericamente afectadas recuperem muito lentamente os seus efectivos.
Daí que as perturbações com consequente diminuição do número de morcegos sejam de extrema importância e gravidade, podendo levar inclusivamente, se forem persistentes e duradouras, à ruptura das colónias de quirópteros com consequente abandono das grutas-abrigo constantemente importunadas.
Na época de criação, a perturbação das colónias pode provocar uma alta mortalidade entre os juvenis, que caem do tecto no meio da confusão, ou mesmo levar ao abandono da gruta como local de criação.
Durante os meses quentes do ano os morcegos insectívoros acumulam energia no seu corpo de modo a sobreviverem à falta de alimento do Inverno, entretanto então no período de hibernação como vista a minimizarem os gastos energéticos. Se as reservas alimentares acumuladas não forem suficientes para toda a época fria os morcegos incapazes de se alimentar terão grandes probabilidades de morrer. Daí que se a hibernação for frequentemente interrompida, por visitantes de ocasião e pseudo-espeleólogos, os morcegos ao serem levados a gastos energéticos desnecessários e prejudiciais arriscam-se a não sobreviverem até à Primavera, época em que poderão novamente caçar no céu nocturno.
Se as incursões no mundo subterrâneo levadas a efeito por curiosos são prejudiciais, por se cometerem inúmeros erros devido a puro desconhecimento, há no entanto incursões com fins puramente destrutivos, que se devem repudiar convictamente. Podendo-se compreender que, por exemplo, na Catalunha se cacem morcegos para confeccionar iguarias gastronómicas é, contudo, incompreensível e condenável que se matem esses inofensivos animais pelo simples prazer sádico de matar.
A perturbação das populações de morcegos toma proporções particularmente gravosas na província algarvia. A afluência, ao longo dos anos, de grande número de pessoas a certas grutas dessa região - a que não estará alheio o facto de virem assinaladas em alguns mapas e guias turísticos e serem de fácil acesso - tem vindo a degradá-las de um modo rápido e irreversível. Sendo algumas delas local de hibernação e/ou criação de morcegos (Gruta de Ibne Ammar, Igrejinha dos Soídos, Salustreiras, Lapa da Pena e Arrifes), chegando a ser visitadas por centenas de pessoas durante o ano - como é o caso das Salustreiras - tem-se verificado uma diminuição sensível dos efectivos das populações de morcegos cavernícolas do Algarve.
Protecção dos morcegos
Das 24 espécies de morcegos conhecidas em Portugal cerca de metade utilizam grutas naturais como abrigo (Palmeirim). A população de algumas dessas espécies encontrando-se concentradas nas poucas grutas que reúnem os requisitos ambientais necessários, chegando a formar colónias com milhares de indivíduos, torna-se particularmente vulnerável.
A situação de ameaça de extinção em que se encontram muitas espécies europeias torna imperativa a defesa das colónias contra a perturbação das grutas-abrigo mais importantes e significativas.
O desaparecimento de uma colónia não é só grave para o património faunístico, como tem consequências, difíceis de avaliar, nos ecossistemas da região e das próprias grutas (onde se poderá verificar o colapso da comunidade de invertebrados cavernícolas). O guano que se acumula no interior das cavernas, prova do sucesso alimentar dos morcegos, tem um grande interesse bacteriológico e além disso é a base, o suporte, de uma fauna particular; podemos mesmo considerar uma verdadeira biocenose do guano. Nessa biocenose encontramos os guanófilos que se alimentam de guanóbios. Com o desaparecimento da colónia de morcegos, acaba o fornecimento de guano, regularmente depositado no solo da cavidade, com a subsequente extinção dos invertebrados do guano (guanóbios e guanófilos).
Em Portugal, ainda que haja evidência de perdas importantes para os morcegos cavernícolas, existem boas populações de várias espécies consideradas ameaçadas a nível europeu. Estão entre elas Myotis myotis, Myotis blythii, Miniopterus schereibersii, Rhinolophus hipposiderus e Rhinolophus mehelyi (segundo o prof. J. Palmeirim). A fim de proteger essas populações e visto que se verifica um aumento do número de grupos de espeleologia, sobretudo devido ao impulso dado pela criação da Federação Portuguesa de Espeleologia, há necessidade de regulamentar o acesso de pessoas às grutas de maior importância como abrigos de morcegos, estratégia que tem tido sucesso noutros países (Tuttle, 1986). Porém para maximizar a eficácia das medidas conservacionistas, há que conhecer a biologia populacional das espécies a proteger e em especial os seus movimentos.
Esta necessidade pode ser ilustrada com Myotis schereibersii espécie que parece estar dividida em populações bem definidas cujos indivíduos se reúnem sempre na mesma gruta durante a época de criação. Com a aproximação do Inverno, a colónia desloca-se para uma ou mais grutas que reúnam as condições necessárias para a hibernação. Para proteger uma população de Myotis schereibersii é portanto necessário conhecer o seu ciclo anual de movimentos. Só assim se poderão proteger as grutas que ocupam ao longo do ano durante as épocas apropriadas.
Estudos em Portugal
Os estudos base para a preparação de um plano de protecção dos morcegos cavernícolas de Portugal, coordenados pelo prof. Jorge M. Palmeirim, têm como objectivo primordial adquirir conhecimentos sobre a biologia populacional dos morcegos do nosso país com vista à sua salvaguarda.
Com o trabalho em curso os responsáveis pelo projecto pretendem ficar na posse dos dados necessários que permitam elaborar um plano viável e com a máxima eficiência se tomem as medidas de conservação e protecção ajustadas. Para tal, estão em curso, desde Janeiro de 1987, uma série de estudos de campo e de gabinete para determinar quais as grutas mais importantes para as colónias de criação e de hibernação, quais as épocas críticas de cada gruta e qual o tamanho passado e presente de cada colónia.
Os resultados do projecto em curso permitirão que seja feita uma listagem das grutas que necessitam de protecção e determinar os períodos em que esta é necessária; além disso, as anilhagens que se estão a efectuar, com posterior recaptura de grande número de morcegos poderá, a médio prazo fornecer dados sobre as taxas de sobrevivência das espécies em estudo (Humphrey e Cope, 1976; Stevensons e Tuttle, 1981), estes dados poderão ser úteis, não só no planeamento de novas acções de conservação mas também na avaliação das acções implementadas.
Uma das formas de evitar as visitas em épocas críticas de criação e/ou hibernação seria o fecho das entradas das grutas de mais fácil acesso, mediante a utilização de grades que não afectassem a passagem dos morcegos e não alterassem o clima da gruta (Tuttle, 1977). Essas grutas permaneceriam abertas durante o período em que as visitas humanas não prejudicassem seriamente as populações de morcegos, podendo-se inclusivamente colocar à entrada uma placa metálica com indicações acerca da cavidade, das causas do seu fecho e, se possível, as datas de encerramento e abertura.
Até que se tomem as devidas medidas de protecção e considerando que as populações de quirópteros têm vindo a ser sistematicamente reduzidas quer pelo abate directo de indivíduos e a perturbação de colónias quer por outras diversas razões e considerando que os quirópteros são um grupo de animais com papel importante no equilíbrio natural dos ecossistemas, bem como um potencial científico pela sua diversidade de espécies e hábitos, é necessário que os espeleólogos, como amantes do mundo subterrâneo, evitem perturbar e não deixem perturbar as grutas-abrigo.
Em Portugal os quirópteros estão protegidos pelo Decreto-Lei nº 354-A/74 sem que, no entanto, na prática se verifique o disposto na referida lei. Será que os quirópteros estão ao “Deus-dará” ou ainda continuamos nos tempos das harpias e dos “pássaros das bruxas”?
Bibliografia
● Diane ACKERMAN: A reporter at large;
New Yorker, Fev. 29, 1988.
● Deodália DIAS & Maria João RAMOS: Inventário da Fauna de Quirópteros do Algarve, proposta para a sua protecção;
Laboratório Zoológico e Antropológico da FCUL (1979).
● Deodália DIAS: Os Morcegos;
Algar, Boletim da Sociedade Portuguesa de Espeleologia, nº 1, 1987.
● Jorge M. PALMEIRIM: Estudos Base para a preparação de um plano de protecção dos morcegos cavernícolas em Portugal (Proposta de trabalho de investigação);
Departamento de Zoologia e Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
● J. M. PALMEIRIM: Status of Bats in Portugal;
Departamento de Zoologia e Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
● J. M. PALMEIRIM: Important Habitats and Roosts;
Departamento de Zoologia e Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
● J. M. PALMEIRIM: Comunicação proferida no I Congresso Nacional de Espeleologia organizado pela Federação Portuguesa de Espeleologia (1 a 3 de Abril de 1988
● J. M. PALMEIRIM: Bat Conservation and Management;
Liga para a Protecção da Natureza, Boletim nº 16, 1977-1982.
● R. E. STEBBINGS: Conservation Measures for Bats
● Pedro CUIÇA: Este Algarve Subterrâneo ou a Critica da Destruição do Carso Algarvio;
Preto no Branco, nº 9, Maio 88.
● Pedro CUIÇA: O Algarve Subterrâneo em Perigo;
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● Pedro CUIÇA: Destruição das Grutas Algarvias;
O Algarve, Ano 81, nº 4063.
● David ATTENBOROUG: Adaptação do corpo dos morcegos à vida no ar;
in A Vida na Terra, Reader’s Digest.
● Decreto-Lei nº 354-A/74, de 14 de Agosto
● Norbert CASTERET: Veinticinco Años entre Murciélagos;
in Mi Vida Subterranea, Ed. Bruguera, S.A..
● Maria Manuela da GAMA: Morcegos de Portugal - Chaves para a sua identificação;
in Mamíferos de Portugal.
[Será de referir que a forma pouco usual de apresentar a bibliografia foi uma opção dos editores da revista. Reproduzimos apenas as imagens que entregámos para publicação.]
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