22/02/2008

O Algarve Subterrâneo

[Revista Futuro ● Ano II, nº 18, Julh. 88, pp. 51-54]

O Algarve Subterrâneo em Perigo


O Algarve atravessou um rápido processo de desenvolvimento urbano e agrícola, guiado e implementado pela indústria turística que aí surgiu nas últimas décadas. Mas este processo teve como consequência uma degradação acelerada do carso algarvio e uma contaminação ambiental, nomeadamente das águas subterrâneas, o que faz prever sérias ameaças à saúde pública, se entretanto os sintomas de contaminação continuarem a agudizar-se.
Sendo o Barrocal algarvio (uma das zonas do Baixo Algarve) a segunda maior extensão de terrenos calcários do país, encontrando-se aí inúmeras grutas sujeitas à destruição contínua por parte de vândalos, incautos ou pseudo-espeleólogos, é de fundamental importância alertar a opinião pública e as instituições da área ambiental para o interesse capital dessas cavidades, com vista à sua protecção.
O primeiro homem a chamar a atenção para importância do estudo das grutas algarvias, apesar de se circunscrever apenas à arqueologia, foi Estácio da Veiga. Tendo sido encarregue em 1877, pelo governo de então, do estudo geral das antiguidades do Algarve, propôs que fossem, antes de mais, estudadas as cavernas. O governo, temendo a demora e os custos que iriam comportar os trabalhos, idênticos aos que tinham sido efectuados por Schemerling e Dupont nas grutas da Bélgica, rejeitou a proposta. Uma enorme lacuna no conhecimento do Algarve subterrâneo ficou por desvendar.
Desde a proposta de Estácio da Veiga até aos nossos dias, o estudo das grutas algarvias tem sido feito de uma maneira inconstante e de certo modo improdutiva, à excepção de certos trabalhos pontuais realizados pela Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE) e por alguns cientistas de diversos ramos do saber - essencialmente geólogos, biólogos e arqueólogos.
O surgimento da espeleologia em Portugal (podemos considerar o seu início em 1948) pouco contribuiu para o conhecimento e estudo das cavidades algarvias por parte dos grupos que se criaram nessa região, devido essencialmente à ausência de um plano regional de trabalho e à falta de cooperação dos grupos, fracos em recursos económicos. A falta de uma licenciatura ou bacharelato em espeleologia, aliada a uma inexistência de legislação que proteja as grutas do nosso país, implica que o baixo nível científico da generalidade dos espeleólogos provoque uma degradação das grutas. Uma mesma gruta é várias vezes visitada e “estudada” por diversos grupos de espeleologia que efectuam, normalmente, a inventariação da cavidade, o que difere em geral de grupo para grupo. Não raras vezes, devido à inconstância existencial desses grupos, esses inventários perdem-se ou estão inacessíveis à consulta, porque encerrados no olvido das gavetas das suas sedes.

Proteger a fauna cavernícola
A inventariação consiste normalmente no nome, localização e topografia da cavidade, dimensões e descrição sumária de uma série de observações de ordem geológica, hidrológica, climatológica, biológica, arqueológica ou outra. Ora a inventariação de cavidades, trabalho de grande utilidade para o conhecimento do potencial subterrâneo da região, só desempenhará a sua função se, por um lado, for realizado em cooperação entre grupos que sigam um mesmo método de trabalho, tentando distribuir os seus efectivos pelas diversas zonas da região algarvia de forma a abarcarem a totalidade do carso e, se por outro, os trabalhos forem publicados, divulgados ou passíveis de consulta.
Numa inventariação não se deverão efectuar recolhas de seres vivos, sob o pretexto de realização de um estudo bioespeleológico, pois a fauna cavernícola é pouco abundante, tendo um menor número de crias do que as formas epígeas análogas.
O equilíbrio ecológico subterrâneo é extremamente vulnerável a qualquer perturbação exterior, sendo a captura de animais cavernícolas reservada a estudos sérios efectuados por zoólogos idóneos, caso contrário destruir-se-á, em poucos anos, esses seres ainda pouco conhecidos.
Dos animais que mais têm sofrido com as incursões dos visitantes são os morcegos, espécies que têm diminuído de número, entre outros factores, por serem perturbados nas épocas de criação e de hibernação. Do mesmo modo, não são admissíveis os “estudos arqueológicos”, com mudança de posição ou recolha de objectos, sondagens ou revolução do solo da cavidade, o que provoca a alteração da disposição espacial e da estratigrafia dos materiais, levando à perda do contexto histórico do espólio aí encontrado. Durante os trabalhos de prospecção, ao ser “descoberta” uma nova gruta, deve-se ter a prudência suficiente na sua exploração, evitando pisar eventuais vestígios existentes no solo da cavidade. Quantas informações foram destruídas por botas de espeleólogos ávidos por chegarem ao limiar das galerias acabadas de descobrir?

Proteger os morcegos
Não esqueçamos também que as cavernas algarvias poderão oferecer agradáveis surpresas no tocante a pinturas e gravuras rupestres, quando forem examinadas minuciosamente as paredes das suas galerias [e salas], em especial as mais interiores ou de difícil acesso (segundo M. Farinha dos Santos). A presença em algumas grutas do Algarve de material neo-eneolítico ou calcolítico (Gruta dos Matos, Gruta da Nora, o Abismo e as Ladroeiras), de material de ocupação árabe (Ibne Ammar) e a relativa abundância da estações neolíticas, requer que se façam os estudos arqueológicos necessários ao bom conhecimento da ocupação das cavernas da província em tempos remotos; no entanto, esses estudos terão de ser efectuados por pessoas devidamente formadas.
Não se devem levar como “recordação”, para colecção, estalactites e estalagmites caídas no solo, ou sequer alterar a disposição de blocos do interior da cavidade, a menos que tal seja necessário para continuar a progressão, pois essas acções modificam o contexto histórico da evolução da caverna.
Depois de feita a inventariação, a gruta deve ser visitada apenas quando for necessário realizar qualquer trabalho de índole espeleológica, caso contrário não se deverão efectuar incursões. Não esqueçamos que um trabalho de inventariação de uma cavidade pode levar meses ou mesmo anos.
Se alguns espeleólogos degradam as grutas sem intenção de o fazerem, a acção dos “curiosos” é muito mais grave e por vezes propositada; a obstrução de cavidades com o auxílio de blocos, o arrancar de concreções (estalactites, estalagmites, colunas, excêntricas, etc.), a caça e perturbação de morcegos, os graffiti nas paredes, o lixo deitado às grutas, são alguns dos factores que mais destroem as formas endocársicas algarvias e o ecossistema associado.
A afluência, ao longo dos anos, de grande número de pessoas a certas grutas algarvias - a que não estará alheio o facto de virem assinaladas em alguns mapas e guias turísticos - tem vindo a degradá-las e a destruí-las de maneira rápida e irreversível. Sendo algumas delas local de hibernação e/ou criação de morcegos (Gruta de Ibne Ammar, Igrejinha dos Soidos, Salustreiras, Lapa da Pena e Arrifes), chegando a ser visitadas por centenas de pessoas por ano - como é o caso das Salustreias -e advindo daí graves prejuízos para os quirópteros (ordem de mamíferos a que pertencem os morcegos), é urgente que se tomem medidas de protecção colocando gradeamentos que não prejudiquem a entrada e saída de morcegos. Essas grutas seriam temporariamente fechadas, evitando-se a perturbação dos morcegos nos períodos críticos (como sugere J. Palmeirim), sendo colocada uma placa metálica à entrada de cada uma com indicações acerca da cavidade, das causas do seu fecho e, se possível, as datas de encerramento e abertura.

Um alerta sobre o Cerro da Cabeça
Ainda outras cavidades se encontram gravemente ameaçadas, assim como a zona em que se situam; o caso de características mais graves é o que se verifica no Cerro da Cabeça (249 m).

Cerro da Cabeça © P. Cuiça (2007)

Nesse cerro encontra-se um megalapiás onde dominam os grandes dorsos de superfícies lisas e arredondadas, relevos cónicos e pedunculados, torres, blocos isolados, arcos, etc., distribuindo-se densamente em toda a elevação. As torres e blocos estão separados por fendas estreitas entulhadas de calhaus que, por vezes, formam pias de fundo rochoso e cheio de blocos ou, então, por corredores (bogaz). Frequentemente, as pias escavadas no lapiás prolongam-se em profundidade por algares, geralmente de boca estreita e obstruídos por blocos (Algar do Próximo), mas por vezes de dimensões suficientemente grandes formando profundas cavidades (Algar Medusa). Consta que o Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve terá efectuado a inventariação de mais de cem cavidades nesse cerro, o que só por si evidencia a importância do mesmo. O elevado estado de degradação em que se encontram as grutas do Cerro da Cabeça, assim como a destruição das instalações de apoio aos espeleólogos (casa de abrigo e miradouro), juntamente com a acção d pedreira situada a SE dessa elevação e as consequências da possível abertura da Gruta da Senhora ao turismo, perspectivam a perda de uma das mais belas zonas cársicas do Algarve.
Um dos processos de impedir a “desertificação” do Cerro da Cabeça seria a criação de uma reserva de interesse espeleológico, mediante a devida protecção governamental, juntamente com um conjunto de medidas de dinamização das potencialidades da área, em que os núcleos/grupos de espeleologia em colaboração com entidades como a Universidade do Algarve, poderiam levar a efeito uma série de iniciativas: estudo e inventariação das grutas; limpeza das cavidades, mediante o retirar de lixo aí existente; criação de um pequeno laboratório subterrâneo, etc. Até lá, a Santa Casa da Misericórdia de Moncarapacho, actual proprietária do Cerro, terá de defender essa elevação dos atentados a que tem sido sujeita, se não…
A situação actual no que diz respeito ao Algarve subterrâneo, repleto geralmente de grutas de fácil acesso, leva-nos a afirmar que um conjunto de cavidades estão em risco de se tornarem galerias “estéreis”; entre elas listamos as que se encontram mais ameaçadas: Lapa da Pena (Caverna do Poço dos Mouros, Alga dos Mouros ou Buraco dos Mouros); Gruta de Ibne Ammar (Gruta de Estombar); Igrejinha dos Soidos (Igrejinha dos Mouros); Salustreira Grande (Solestreira Grande); Salustreira Pequena (Solestreira Pequena); e Grutas do Cerro da Cabeça.

Contaminação das águas subterrâneas
Além da destruição das grutas e dos ecossistemas associados, outra vertente de degradação do carso algarvio, que assume considerável gravidade, é a da água associada aos aquíferos cársicos.
Os factores geológicos, geomorfológicos e climáticos do Algarve, ao condicionarem as características hidrológicas da região, impuseram à população a utilização das águas subterrâneas; a comprová-lo temos cerca de 15 mil poços pouco profundos e 8 mil captações por furo vertical (na sua maioria realizadas a partir de 1974).
O grande desenvolvimento urbano e agrícola, liderado pelo turismo, trouxe consigo um aumento significativo dos resíduos sólidos, águas residuais, fertilizantes, pesticidas, que terão de ser eliminados ou tratados de modo a não pôr em causa a saúde pública e o meio ambiente. No Algarve os resíduos sólidos são, de modo geral, eliminados de duas formas: por meio de lixeiras, normalmente ao abandono; ou por aterros sanitários controlados pelas autarquias locais. A lixeiras subaéreas são extremamente gravosas para a boa qualidade das águas subterrâneas, devido aos resíduos que se encontram expostos à acção das chuvas, aumentando assim a quantidade de compostos lixiviados que o solo dificilmente consegue depurar. Os aterros sanitários, sujeitos a controlo, onde se verifica a alternância de resíduos com camadas de terra, com compactação para reduzir o volume e a velocidade de decomposição, diminuem o perigo de poluição das águas. No entanto, a ameaça de existência de organismos patogénicos nas águas subterrâneas da região é real, devido ao baixo poder de filtração das formações carbonatadas; entre esses organismos (…).
A contaminação biológica, tida tradicionalmente como a mais antiga causa de problemas sanitários foi a razão de grandes pestes na região calcária dos Causses em França (Departamentos de Charente, Dordonha, Lot e Corrèze); durante a Idade Média as populações, ao jogarem os animais doentes para o fundo dos algares, estavam poluindo a água que bebiam. O costume de deitar animais doentes para as grutas ainda se verifica no nosso país.

A agressão agro-química
A contaminação biológica está actualmente em segundo plano devido a outros tipos de contaminação das águas, tipos esses mais prolíferos e de maior dificuldade de eliminação: referimo-nos aos compostos químicos. A utilização de fertilizantes químicos em excesso, em vez do estrume tradicional de origem animal, aliado aos processos de rega, têm conduzido, no Algarve, à diminuição do rendimento das colheitas, facto que os agricultores procuram “compensar” com o aumento das quantidades de adubos e fertilizantes industriais. Este ciclo vicioso contribui grandemente para a mineralização crescente das águas subterrâneas, processo agravado pela acção da seca que se tem vindo a sentir no Algarve desde 1980.
Estes problemas poderão ter reflexos evidentes no abastecimento da região, já que 90 por cento da água consumida no Algarve provém dos recursos subterrâneos. Importa, pois, mais uma vez, chamar a atenção das entidades para o problema. Urge agir depressa.


Bibliografia
● Costa Almeida: Hidrogeologia do Algarve Central; publicado pelo Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).
● Deodália Dias, M. João Ramos: Inventário da Fauna de Quirópteros do Algarve; proposta para a sua protecção do Laboratório Zoológico e Antropológico da FCUL.
● Estácio da Veiga: Antiguidades Monumentais do Algarve; Vol. 1, 1886.
● F. Esteves da Costa, J. Amaral Brites, M. Yolanda Pedrosa, A. Vieira da Silva: Carta Hidrogeológica da Orla Algarvia (Notícia Explicativa); Lisboa, 1985.
● G. Manupella, M. Ramalho, M. Telles Antunes, J. Pais: Notícia Explicativa da Folha 53-A - Faro, dos Serviços Geológicos de Portugal; Lisboa, 1987.
● Jorge M. Palmeirim: Estudos base para a preparação de um plano de protecção dos morcegos cavernicolas em Portugal, do Departamento de Zoologia e Antropologia da FCUL.
● Jorge M. Palmeirim: Status of bats in Portugal, do Departamento de Zoologia e Antropologia da FCUL.
● Jorge M. Palmeirim: Bat conservation and management, publicado pela Liga para a Protecção da Natureza, Boletim nº 16, 1977-1982.
● M. Farinha dos Santos: Pré-História de Portugal, 1985.
● Michel Bouillon: Descoberta do mundo subterrâneo; in Livros do Brasil, Colecção Vida e Cultura nº 52.
● Orlando Ribeiro, Hermann Lautensach, comentários e actualização de Suzanne Daveau: Geografia de Portugal, Vol. 1. A posição geográfica e o território, 1987.
● Orlando Ribeiro: Mediterrâneo, Ambiente e Transição, 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian.
● O. da Veiga Ferreira e Manuel Leitão: Portugal Pré-Histórico, edição Europa América, in Biblioteca Universitária nº 21.
Sociedade Portuguesa de Espeleologia: Algarocho, nº 6/7, 1977-1978.



[Será importante salientar que o título e entretítulos da peça em causa são da inteira responsabilidade dos editores da revista, opções com as quais não nos revemos. No entanto, entendemos que deve ser respeitada a reprodução integral do texto tal como foi publicado. Será também de referir que a forma pouco usual de apresentar a bibliografia também foi uma opção editorial. Salientamos igualmente que o texto original sofreu alguns cortes, por motivos de espaço, e que, passados 20 anos sobre o mesmo, mudamos de perspectiva sobre alguns dos pontos de vista defendidos. Por último, não nos foi possível reproduzir a totalidade das imagens que ilustraram esta peça jornalística.]

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