Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)
As cidades são, muitas vezes, acusadas de comportarem inúmeras corrupções morais em relação à sã pureza dos campos, tornando-se, no espírito de alguns, em meios deletérios que comprometem irremediavelmente a saúde das populações aí residentes. Esta é uma visão que se compreenderá por parte daqueles que habitem em gigantescas, caóticas e poluídas urbes, no entanto tal é difícil de entender em cidadezinhas de província, com milhares de habitantes, sendo certo, é claro, que no tocante à qualidade de vida se podem atingir vivências infernais até na mais pequena aldeola. Não será necessário comparar Faro à cidade do México, Loulé a São Paulo ou Olhão a Teerão, pois não?
O aumento da população nos centros urbanos do litoral de Portugal, e áreas limítrofes, contrapõe-se à respectiva “desertificação” do interior do país. A essa procura de urbanidade, como
habitat e sobretudo lugar de trabalho, corresponde simultaneamente uma necessidade de fuga a esses meios urbanos, o mais frequentemente possível, através de migrações periódicas ou até, em última instância, acabando por ir viver, a tempo inteiro ou parcial, a quilómetros de distância num falso campo, mito do regresso à natureza. Estranho paradoxo em que, por um lado, as populações fogem do que resta do mundo rural e, por outro, anseiam por voltar às "origens". Acontece que esse regresso, geralmente temporário, é acompanhado por todos os “tiques” urbanos entretanto adquiridos.
Muitos cidadãos urbanos viverão saudosos do campo ou das suas cambiantes e irão tendencialmente procurar à volta das suas habitações, ou o mais perto destas, um cenário que lhes recorde aquilo que acalentam: uma "espécie de natureza". A oferta das agências imobiliárias é, a esse respeito, evocadora dos seus desideratos… A “vista” é assegurada pela implantação preferencial sobre topografias acidentadas, idealmente no topo de elevações, que permitam pôr em evidência amplas panorâmicas. A “natureza” é representada pelo local à beira de um “curso de água” ou de um “matagal”, pelo terreno e o seu arranjo, a plantação de árvores ou a disposição de relvados.
Na medida em que as populações urbanas são cada vez mais numerosas e em que cresce a proporção dos cidadãos possuidores de meios suficientes para participar nesta projecção do seu quotidiano sobre áreas cada vez mais extensas, cada vez mais dispersas e cada vez mais adulteradas, o espaço originalmente rural (na área de extensão dos apetites urbanos) torna-se um “bem raro”, um bem caro e uma base de investimentos especulativos. Nesse contexto, multiplica-se a concorrência entre as utilizações rurais e as urbanas, com saldo geralmente negativo para as primeiras em detrimento das segundas!
Na periferia imediata dos aglomerados, essa concorrência rural
versus urbano faz-se sentir, sobretudo, na instalação de estabelecimentos de serviços, mercados grossistas, entrepostos e aeroportos. Depois, a especulação turística disputa o solo às formas tradicionais de exploração, especialmente nos locais propícios à organização de lazeres recomendáveis pela moda, tais como as praias.
Nos países densamente povoados e fortemente urbanizados, o território tem tendência para ser inteiramente integrado nos ritmos de vida urbana e é preciso, para mudar de meio, procurar outros sítios, frequentemente muito longe, nos países subdesenvolvidos que, por sua vez, entram no espaço de serviço das grandes regiões industriais e urbanas e perdem rapidamente a sua personalidade, características distintivas e tradições.
Para além da adequação ou não de determinada parcela de território comportar a instalação de áreas residenciais, o estudo dessas áreas deve colocar em primeiro plano a taxa de ocupação do espaço, ou seja, a densidade de construção. Esta relação deve ser ponderada por coeficientes qualitativos de acordo com a maior ou menor perceptibilidade da densidade. Esta perceptibilidade será tanto maior quanto a densidade se acompanha de promiscuidade, podendo definir-se essa promiscuidade como a tomada de consciência permanente da aglomeração excessiva através de todas as restrições associadas. A densidade de construção e a perceptibilidade dessa densidade verificam-se quer em zonas urbanas, quer em zonas “campestres”, razão pela qual uma determinada área, inicialmente caracterizada por altos padrões de qualidade ambiental, pode sofrer fortes pressões urbanísticas e tornar-se pura e simplesmente promíscua, descaracterizada e com baixos índices de qualidade. Será que estar barricado por muros e/ou vedações na sua casa de campo rodeada por outras residências e vizinhos contíguos será preferível a deixar de ouvir os vizinhos na casa de banho do andar de cima?
Em ambas as formas de edificação (vertical e horizontal) e em densidades elevadas verifica-se a materialização da promiscuidade: o ruído (que, em parte, se traduz por uma percepção ou uma representação da presença dos vizinhos), a convergência, a horas fixas, para os mesmos espaços de serviços comuns ou outros,
etc.,
etc.,
etc.. Curiosamente, para uma densidade igual, a sobreposição em andares múltiplos (em prédios), enquadrados por espaços abertos, é menos constrangedora do que um "amontoado" horizontal.
No plano estrito da ocupação do solo, o meio ambiente não é traduzido por uma simples transposição da densidade. A sua apreciação resulta da qualidade ou, no sentido mais lato, das formas de utilização dos espaços e dos volumes consagrados ao alojamento ou outras actividades. Nesta base, pode empreender-se a interpretação das preferências, mais ou menos claramente expressas, em relação aos diversos tipos de construção, de estéticas e tamanhos variados, casas individuais concentradas ou espalhadas, etc..
A qualidade do alojamento é percebida não só em termos de disposição, de comodidades interiores e de isolamento, mas também em função do seu “meio ambiente” no sentido etimológico e restrito da palavra, quer dizer, do espaço panorâmico e de utilização quotidiana que o rodeia, da envolvente. Uma área urbana, por exemplo uma cidade, bem estruturada e com uma densidade de construção apropriada, com áreas residenciais, de lazer e de serviços integradas, é certamente diferente de um dormitório suburbano carente dos mais elementares serviços. É bom viver em comunidade (algo em vias de extinção), poder contar ou simplesmente interagir com a vizinhança ou, simplesmente, poder sair de casa e ir à esquina comprar pão! Desta forma talvez fosse possível dispor de áreas urbanas e de áreas rurais ou naturais de qualidade, ao invés de uma generalizada descaracterização e de um crescente desordenamento do território, com claras vantagens no que concerne à preservação do património geológico, da biodiversidade e da paisagem, não esquecendo os aspectos culturais e tradicionais das populações.
A bipolaridade que se verifica nesta pós-modernidade hedonista e solipsista aconselharia uma reflexão profunda acerca da relação do Homem face a si mesmo e ao meio ambiente no qual habita. Talvez fosse interessante questionar e rever diversos dos paradigmas, muitas vezes contraditórios, que nos conduzem. Poderíamos começar por nos ver como cidadãos do mundo, em prol do todo e não das partes. E, em vez de considerar a Terra como uma aldeia global (qual laranja normalizada, de costumes e hábitos uniformizados), apostar na globalidade de diferentes aldeias e extasiar-se face à diversidade de costumes, hábitos e tradições, seres vivos e paisagens. A unidade na diversidade será certamente o caminho a seguir…