Suburbanismo campestre
Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)
Quando se fala em desordenamento do território dificilmente se poderá olvidar o Litoral algarvio. O crescimento exponencial que a indústria turística registou, desde a década de 60 do século passado, acompanhado pelo correspondente incremento de outros sectores, de que destacamos a construção civil, é bastante conhecido e dado frequentemente como exemplo daquilo que se deveria evitar!... Conversas para “inglês ver” porque na verdade pouco ou nada tem mudado no que concerne a esta matéria. Senão vejamos: é certo que o campismo selvagem pós 25 de Abril acabou, tal como a construção ilegal sobre as dunas, entre outras aberrações, mas os atentados ambientais prosseguem a bom ritmo muitas vezes maquilhados sob roupagens mais “verdes”, “ecológicas” ou simplesmente “in”! Outras vezes, encaminhados tão-somente ao ritmo de “conhecimentos”, cunhas, subornos ou outras alcavalas. O dinheiro pode muito e no Algarve… Pois é: nesta região mudam-se os tempos e permanecem as vontades. Sobretudo a vontade de continuar o lucro fácil e de prosseguir o ordenhamento do território até que a galinha dos ovos de ouro excrete a última pepita, ou, melhor, a vaca dessacralizada espirre a última gota...
A propósito de “inglês ver”, espanta-nos que quer estes, quer outros povos, com particular destaque para o português (por óbvias razões geográficas), não vislumbrem aquilo que lhes é dado manifestamente ver num simples olhar à sua volta. Certamente não devem “olhar com olhos de ver” ou, então, têm visão selectiva e só vêm aquilo que lhes agrada ou interessa. Ninguém descortina a urbanização das colinas do Barrocal algarvio, inclusivamente nas linhas de cumeada?
A passagem da construção digamos “desadequada” para o Barrocal e para a Serra é um dado bem mais recente do que o fenómeno litoral e curiosamente bem menos focado (porque convém?). Será que estamos perante um processo em tudo idêntico? Primeiro degrada-se e destrói-se para, só depois, carpir os males que já estão feitos, colocar “paninhos quentes” sobre essas inevitabilidades ou, pura e simplesmente, limitar-se a tirar a água do capote; dissolver as responsabilidades por todos, pelos outros ou pelos tão famosos quanto indefinidos “eles”…
O crescente interesse que o interior do Algarve tem suscitado, de há alguns anos a esta parte, consubstancia-se nomeadamente no aumento significativo do número de casas nas colinas do Barrocal e nas serras do Caldeirão e de Monchique. Este fenómeno, para além de alterar marcadamente a paisagem, é causador de diversos impactes ambientais e não só…
O Cerro da Bita e a gruta homónima trata-se apenas de um exemplo (focado na posta anterior) de como as pressões económicas e demográficas se fazem sentir também e cada vez mais no “Algarve profundo”. Quem percorrer a Via do Infante dará conta certamente da proliferação de casas que se encontram indiscriminadamente distribuídas pelas vertentes e linhas de cumeada. Não será assim? Caso não vislumbre o descrito recomenda-se fortemente a consulta de um oftalmologista, pois até o Mister Magoo detectaria certamente algo de “anormal” nesse profícuo pontilhado de edificações.
De resto, olhar e ver ou não ver será tarefa de somenos interesse: importante será constatar o ritmo crescente a que as transformações se processam e fazer algo. Que mais não seja compreender e denunciar tal situação. O fenómeno em curso não augura um futuro animador para a região no seu todo e, muito menos, para o carso superficial, o endocarso e aquíferos associados. A destruição do património natural processa-se paulatinamente mas de forma irreversível.
Outro exemplo bem expressivo do assunto em causa - a construção desregrada no interior do Algarve - é, sem dúvida, aquele que se verifica na cumeada que se estende entre os vértices geodésicos Goldra e Nexe, e suas imediações. O problema da urbanização nessa área traduz-se, para além do inegável impacte visual, na dificuldade ou impossibilidade de circulação de pessoas, entre outras problemáticas tão ou mais gravosas… A “coisa” atingiu um ponto em que actualmente não se consegue aceder ao Algarão da Goldra!
Miguel Telles Antunes (1986)* refere a existência de uma brecha ossífera no carso da Goldra. Esse depósito sedimentar deu pedras talhadas em quartzo, quatzito, sílex e grauvaque, bem como restos de mamíferos e alguns (poucos) gastrópodes. Entre as espécies identificadas destacamos a presença de Elefante (Cervus elaphus LIN., 1758), que traduz diferentes características biogeográficas… A brecha forneceu alguns instrumentos pré-hitóricos pouco representativos que não permitiram definir a indústria a que pertencem, mas o conjunto parece reportar-se ao Paleolítico médio, Paleolítico superior ou Epipaleolítico. A probabilidade deste depósito ser do Mousteriano antigo (interglaciar Riss-Würm ou início do Würm) é, no entanto, grande.
Tudo leva a crer que o local se tratava de um “refúgio” de caçadores. Certo é que a vista para o mar devia ser tão ou mais esplendorosa do que nos dias de hoje, esses nossos antepassados circulavam sem barreiras e os vestígios por eles deixados foram esparsos para não dizer insignificantes. Nessa altura não se falava de sustentabilidade, a vida era pura e simplesmente sustentável. O mesmo não se poderá dizer, daqui a uns milhares de anos, do legado com que iremos “brindar” as gerações vindouras. Hoje os campos estão a ser progressivamente vedados e transformam-se irremediavelmente em áreas suburbanas, descaracterizadas e feias.
Tal como se passou há alguns anos atrás com a estranha proliferação das arquitecturas ditas tipo “maison” (cubos com acesso directo ao primeiro andar através de escadaria) ou tipo “WC” (variante forrada a azulejos de casa de banho), talvez os actuais proprietários das “casinhas de campo” dos nossos dias vislumbrem as profundezas dos erros em que incorrem. A arquitectura característica do emigrante de outras eras foi sofrendo remodelações à medida que os donos se inteiravam da pirosice do fenómeno, mas quando os actuais “felizardos” se aperceberem que a saloiada em que estão metidos é um grito tão ou mais manifesto de ignorância e desrespeito ambiental o que irão fazer? Abandonar os seus jardins kitch e deixar que o mato volte a invadir o terreno? Não será tão simples...
Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)
22/08/2008
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