01/08/2008

Espeleocentrismo

Sicó © António Lago Queirós (2008)

Retomando a questão colocada na "posta" Geoconservação, de 30 de Julho, - As pedras têm direitos? - vem à colação o livro que me levou a escrever essa peça jornalística sobre a conservação do património geológico: A Nova Ordem Ecológica (Edições Asa, 1993) [Le Nouvel Ordre Écologique (Éditions Grasset & Fasquelle, 1992)]. Trata-se de uma obra do filósofo francês Luc Ferry que apresenta uma abordagem inovadora acerca da conservação da natureza ou, melhor, do direito da natureza.
Para nós, Modernos (…) parece-nos muito simplesmente insensato tratar os animais, seres da natureza e não da liberdade, como pessoas jurídicas. Consideramos óbvio que só os últimos são, por assim dizer, «dignos de um processo». A natureza é, para nós, letra morta. Em sentido próprio: ela não nos diz nada porque deixámos há muito - pelo menos desde Descartes - de lhe atribuir uma alma e de a crer habitada por forças ocultas. Ora, a noção de crime implica, aos nossos olhos, a de responsabilidade, supõe uma intenção voluntária - ao ponto de os nossos sistemas jurídicos reconhecerem as «circunstâncias atenuantes» em todos os casos em que a infracção à lei é cometida num «estado secundário», sob o domínio da natureza inconsciente, portanto à margem da liberdade de uma vontade soberana. Verdade ou novo imaginário que fará, também ele, sorrir as gerações futuras? Bem poderá acontecer, com efeito, que a separação do homem e da natureza, pela qual o humanismo moderno foi levado a atribuir apenas ao primeiro a qualidade de pessoa moral e jurídica, não tenha sido senão um parêntesis, em vias de voltar a fechar-se.
A abordagem da questão do direito dos objectos naturais tem como ponto de partida os pontos de vista do conceituado professor Christopher D. Stone. Em 1972 aparece nos EUA, na seríssima Southern California Law Review, um longo artigo do professor Stone intitulado: Shoul trees have Standing? Toward legal rights for natural objects. (“As árvores deverão ter um estatuto jurídico? Rumo à criação de direitos legais para objectos naturais”). “A argumentação de Stone a favor do direito dos objectos não deixa de ter interesse. O seu primeiro momento, que agradará aos discípulos de Tocqueville, consiste em recordar o raciocínio, ritual nesta literatura ecologista, segundo o qual o tempo dos direitos da natureza teria agora chegado, após o das crianças, das mulheres, dos Negros, dos Índios, até mesmo dos prisioneiros, dos loucos ou dos embriões (no quadro da investigação médica, senão no das legislações sobre o aborto…). Em suma, trata-se de sugerir que o que parecia «impensável» numa época, em tantos aspectos próxima da nossa, se tornou na evidência de hoje. E Stone cita, com justeza, as setenças de certo tribunal judicial que, ainda no séc. XIX, considerava que os Chineses, as mulheres e os Negros não eram, em grau aliás diversos, sujeitos de direito.
Esta forma de pensar, de certo modo polémica e criticada por muitos, veio colocar ou recolocar uma série de questões acerca das concepções filosóficas do homem perante o meio ambiente e sobre si mesmo. “Mas é num plano quase «ontológico» que as interrogações se tornam mais prementes: é que a astuciosa construção jurídica dissimula uma tomada de posição filosófica discutível, a favor de um regresso a concepções antigas da natureza. Estes pensadores que se pretendem, em sentido próprio, «pós-modernos», filósofos ou juristas do «após-humanismo», não comungam estranhamente de uma visão pré-moderna do mundo, onde os seres da natureza reencontram o seu estatuto de pessoas jurídicas?
(…)
O debate sobre o direito das árvores, das ilhas ou dos rochedos,
[dos carsos e das grutas] para além das suas bizarrias, que dificilmente se imagina que escapem a Stone e aos seus amigos, não tem outro motivo: trata-se de saber se o homem é o único sujeito de direito, ou se, pelo contrário, aquilo a que hoje se chama «biosfera» ou a «ecosfera» [ou, porque não, a «geosfera»], e que outrora se designava por «cosmos» também assim pode ser considerado. O homem não seria neste caso, sob qualquer ponto de vista - ético, jurídico ou ontológico -, senão um elemento entre outros, a bem dizer o menos simpático, por ser menos simbiótico neste universo harmonioso e ordenado onde ele não pára, pelos seus excessos, pelo seu «ubris»*, de introduzir a mais incómoda desordem. Não se imporá o recurso a um novo «contrato natural» que ponha esse orgulho no seu lugar e restabeleça a harmonia perdida? Não é, assim, de uma visão humanística para uma visão cósmica do direito, que esta pré-modernidade nos convidaria a passar?
Segundo uma terminologia já clássica nas universidades americanas, deve-se opor uma “ecologia profunda” (deep ecology), “ecocêntrica”, “biocêntrica” ou “geocêntrica”, a uma “ecologia superficial” (shallow ecology), ou “ambientalista”, fundada no velho antropocentrismo. Nesse contexto, talvez devêssemos avassar para um posicionamento mais “espeleocêntrico” ao invés de posturas assentes no espeleosuperficialismo…

Península de Lisboa © Pedro Cuiça (2006)

[* “Ubris” é um substantivo grego que significa “desmesura”.]

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