25/08/2008

Allarve (V)

O que é natural é bom!

Mortero de Astrana (Cantábria) © Pedro Cuiça (2007)

A propósito de motivações, concepções alternativas e confusões de alguns (ou até de muitos) “urbanóides” no tocante à sua relação para consigo próprios e para com a vida que levam, ocorre-me o exemplo de uma amiga, de outra que o deixou de ser e, sobretudo, de um trecho de um livro que li há bastante tempo: O Meio Ambiente do geógrafo francês Pierre George (Edições 70, 1984) [L’Environnement (Presses Universitaires de France, 1971)].
É certo que “cada um sabe de si e Deus sabe de todos” (dizem) e mais certo ainda que não tenho nada a ver, nem me interessa, a vida dos outros e, portanto, nesse particular estamos esclarecidos. Mais, sou um tipo urbano (que mais não seja porque sempre vivi em cidades) e não estou também isento da minha dose de confusões, portanto nesta matéria também estaremos esclarecidos. A razão de analisarmos determinadas confusões não se prende com a “coisa em si” mas com as consequências, nomeadamente ambientais (e mais particularmente no tocante ao carso), resultantes dessas diletâncias intelectuais e insuficiências racionais e/ou emocionais.
Mas regressemos aos exemplos de que falamos. A primeira amiga vive num aglomerado suburbano em que nem se vê o mar e, no entanto, diz que vive junto à "praia"! A segunda, não passando sem os “encantos” de noitadas urbanas e quejandos, vem agora cantar loas à vida no “campo”. Une-as idênticas disfunções mentais e a necessidade de, após as suas vivências de "praia" e de "campo", respectivamente, precisarem ainda de mais “natureza”. Nem mais!... :)
Quanto ao texto aqui vai:
O meio ambiente identifica-se então, para uma minoria mais ou menos numerosa, com a “residência secundária”, a casa de fim-de-semana mais ou menos afastada do bairro urbano de habitação principal. A sua localização é, geralmente, eloquente quanto ao que o citadino procura para compensar as suas frustrações: o campo, o silêncio, o enquadramento de vegetação natural, um curso de água ou a margem de um lago, um tipo de habitação evocando, frequentemente de um modo muito artificial, uma casa rural convencional, contactos com camponeses mais ou menos verdadeiros… Esta mudança de meio ambiente, ritmada pela sucessão das semanas, já não é suficiente. O citadino incorpora ao seu meio ambiente espaços ordenados onde lhe são assegurados um ou vários dos temas essenciais à sua busca da natureza: a costa de clima luminoso, durante o Verão, a montanha nevada e cheia de sol, no Inverno. Adquire, por um preço relativamente elevado, o direito de utilização destes bens raros durante algumas semanas. O “produto” que lhe irão vender será tanto mais caro, e a sua venda tanto mais lucrativa, na medida em que o seu preço vai aumentar acompanhando-o de serviços, de cenários, fazendo dele um meio ambiente “fabricado”, fonte de grandes operações de embelezamento das regiões de turismo de Verão e de Inverno, transformando sectores inteiros de espaço rural em espaço de serviço para os lazeres dos citadinos.
De uma forma geral, a incorporação de fracções específicas de um território ao espaço de serviço de grandes cidades, no interior de um estado ou à escala internacional, implica transformações importantes deste território. Trata-se de o tornar acessível a uma circulação de massas, portanto, de o tirar do seu isolamento. Ele perde,
ipso facto, todos os caracteres que poderiam derivar do seu isolamento, particularmente a capacidade de conservação de certas espécies vegetais e sobretudo animais. Escapa à protecção natural que este isolamento implicava.
Em segundo lugar, deve ser embelezado quer para uma estada quer para uma simples passagem. É, portanto, um lugar de experiências e de especulações imobiliárias, com diversificação de construções segundo a clientela.
Em terceiro lugar, deve atrair pela diversidade e qualidade das suas diferentes instalações, pelo sossego, desporto, diversas distracções: a especificidade de um espaço de lazer não é mais do que uma dominante à volta da qual é necessário assegurar a ocupação a tempo pleno de todos os utentes. Uma grande estação turística ou uma grande região turística é uma espécie de grande
kermesse que oferece, à volta de um tema principal - a neve ou o mar - os mais diversos espectáculos, os jogos de casino, assim como a possibilidade de proezas desportivas ou de espectáculos desportivos. Quanto às curiosidades naturais, devem ser tão comodamente acessíveis como uma sala de museu. (…) É a esta visão da natureza que os citadinos se arriscam a estar condenados em todas as regiões escolhidas, graças aos seus privilégios físicos, para serem as antenas do meio ambiente urbano. Tornou-se banal, hoje em dia, para oferecer aos banhistas cada vez mais numerosos a vizinhança de praias, construir edifícios de quinze a vinte andares ao longo de toda a costa. Os Americanos, que tinham muito espaço, deram o exemplo com Miami, Copacabana, Guarujá, São Vicente, Mar de la Plata, Miramar… A Europa seguiu-os. (…)
Estes embelezamentos, e os danos que deles resultam nas paisagens naturais, são irreversíveis, e é o que faz reflectir, tanto mais que certos abalos provocados nos frágeis equilíbrios naturais podem desencadear catástrofes. O superpovoamento temporário, a superocupção de encostas mal estabilizadas, a tentação de utilizar todo o espaço para nele realizar operações rendosas e dar satisfação ao maior número de utentes, criam graves tensões no plano da segurança. (…) Excluindo estas ameaças de acidentes graves, felizmente bastante raros - mas cuja frequência se arrisca a aumentar devido à sobrecarga - certos caracteres fundamentais dos espaços de lazer esbatem-se progressivamente. Recomendou-se, e procurou-se, frequentá-los para escapar às agressões do meio urbano: a pressão da multidão, o ruído, a circulação, a moldura de betão, de vidro e de aço, as solicitações do comércio com publicidade luminosa e sonora… Mas o que resta, numa estação de desportos de Inverno ou numa grande praia arranjada, da integridade do quadro natural, da calma, da pureza do ar e das águas, da segurança, do retomar o contacto com outros tipos de homens e de actividades? De resto, há já muito tempo que se deixou de procurar captar a clientela propondo-lhe o que se sabe que já não se pode oferecer-lhe, e que apenas tem interesse propor-lhe um prolongamento da cidade estruturada à volta de uma actividade ou de um complexo de distracção específico do lugar ou da estação.

Carvoeiro (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

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