Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)
Pelo que se passa na Goldra e noutras áreas da região e do país, em termos de construção desregrada e vedação de terrenos, é fácil depreender que o exposto no Capitulo I da Constituição Portuguesa, sobre Direitos, liberdades e garantias pessoais, acerca do Direito de deslocação e de emigração (ponto 1 do Artigo 44º), será um ideal a atingir mas, se não impossível, difícil de pôr em prática: “A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional”.
Ao nível da jurisprudência, têm sido dois os critérios preconizados para reputar determinado caminho como público. Um deles – expresso em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 1970 – onde se argumenta que “o simples uso directo e imediato dum caminho pelos moradores das povoações não lhe concede carácter público, pois é indispensável provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público e que por ela é administrado”. Outro - expresso em Assento, do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19 de Abril de 1989 - onde se fixou, na altura com força obrigatória geral, que "são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. Saliente-se que hoje já não vigora o regime dos assentos a fixar doutrina com a força obrigatória geral que era instituído pelo artigo 2º do Código Civil. De acordo com este segundo critério não será, pois, necessário que o caminho tenha sido apropriado ou construído pelo Estado ou por uma autarquia local e que esta tenha praticado actos de administração, jurisdição ou conservação. Muito embora se reconheça tratar-se de matéria sujeita a diversas interpretações, poderemos genericamente reputar um caminho como caminho público pela circunstância de certa faixa de terreno estar afecta à circulação da generalidade das pessoas. Mas não nos podemos esquecer de que tal se trata de uma generalização ou simplificação.
É de fundamental importância efectuar uma análise mais aprofundada da doutrina perfilhada no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 1989, tendo em conta as diversas interpretações que possam ser avançadas e suas implicações. A qualificação de um caminho como sendo público, face à doutrina vertida no referido assento pressupõe a verificação de dois requisitos: a imemorialidade da utilização e a utilização pelo público em geral.
Não basta, pois, a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas para considerar a utilização pelo público em geral, assim como também a imemorialidade do uso só se verificará se a autoridade competente provar que o começo do uso directo e imediato pelo público não faz parte da memória dos vivos. Nestes termos, se um determinado caminho se encontra no uso directo e imediato do público desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém, estamos perante um caminho público insusceptível de apropriação privada.
O assento de 19 de Abril de 1989 deve, porém, ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à entidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Na falta deste requisito e, em especial, quando se destinem apenas a fazer ligação entre caminhos públicos por prédio particular com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros. No entanto, será de salientar que os atravessadouros, por mais antigos que sejam, foram abolidos pelo art. 1383.º do Código Civil, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões. Note-se, porém, que também são reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à sua utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial (segundo o art. 1384º do Código Civil). Se a passagem se traduz num poder conferido a um proprietário de um prédio encravado de aceder à via pública, então estaremos perante uma servidão legal de passagem, estaremos perante um caminho de servidão.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família. (art. 1547, nº 1, do Código Civil). As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos. (art. 1547, nº 2, do Código Civil). Pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido. (art. 1554º do Código Civil). A mudança de um leito de servidão, que passe a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda ao mesmo prédio – mudança do locus servitutis – não implica a constituição de uma nova servidão de passagem, por contrato. Pese embora se altere o traçado da servidão, “o respectivo direito é o mesmo” pelo que não se inicia uma nova situação possessória.
Por último, será conveniente definir a noção de usucapião: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”. Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse. Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública.
Havendo dúvidas sobre a qualificação da dominialidade de um caminho, competirá aos tribunais comuns, na sequência do princípio da separação de poderes previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), decidir acerca da mesma.
O que acontece na prática é que caminhos públicos, por manifesto desinteresse dos municípios e das juntas de freguesia, são muitas vezes apropriados e à falta de contestação passam a ser privados. Ao menos nisto há alguma coerência: se as entidades (ir)responsáveis deixam construir despreocupadamente, sem ter em consideração o património natural ou outras especificidades, porque se haviam de preocupar com caminhos ou trilhos; ainda para mais quando se livram da responsabilidade de manutenção dessas vias de comunicação. Desta forma "matam dois coelhos numa mesma cajadada": ganham por via do licenciamento e impostos sobre as "edificações campestres" e poupam em despesas de manutenção...
Resta congratular-nos pela propalada livre circulação de pessoas e bens, tal como agradecer a liberdade de nos podermos deslocar! Obrigadinho!... Tal seria muito bom não fosse o facto de, na prática, tal se aplicar cada vez menos. Não é possível chegar ao Algarão da Goldra e a muitos outros sítios da geografia nacional. A liberdade de circular em caminhos públicos não se aplica em inúmeras circunstâncias... O contrário de estar vivo é estar morto e o contrário de liberdade é... deitarem-nos areia para os olhos. Porque "em terra de cegos quem tem um olho é rei".
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