Costa Vicentina
Terra, mar e imensidão
De Odeceixe ao Cabo de S. Vicente desenvolve-se um dos mais belos troços do litoral português. A Costa Vicentina surge em arribas altaneiras, recortada por imponentes promontórios e apertadas baías, bordejada por praias de areia e de calhau. Tons de rocha face ao azul das águas profundas ou ao verde-esmeralda dos baixos fundos.
Nesse encontro entre a terra e o mar, onde se verifica uma eterna luta dos elementos, revela-se a imensidão do espaço e do tempo. O mar que se estende até perder de vista, tendo apenas a linha do horizonte como limite, traduz a grandiosidade do espaço. As rochas revelam histórias de ambientes diferentes que se perdem nas brumas do tempo: outros litorais, outros seres vivos, outros climas…
Costa Vicentina © João Mariano
Onde a terra acaba…
Na zona norte da Costa Vicentina afloram velhas rochas que os geólogos atribuem à Era Paleozóica (544 a 245 milhões de anos atrás), sobretudo xistos argilosos e grauvaques (como nas praias de Odeceixe ou do Castelejo), mas também calcários, quartzitos e outras litologias. Os fósseis dos seres que viviam nesses estranhos e longínquos mundos do Paleozóico surgem com alguma frequência. Testemunhos petrificados de habitats, esquecidos pela passagem de tempos incomensuráveis, em que pululavam espécies hoje extintas.
Resultado de prolongadas e gigantescas tensões, as rochas apresentam-se geralmente muito dobradas, fracturadas e metamorfizadas (como entre a Baia dos Tiros e Odeceixe). São dobras frequentemente caprichosas cujos topos foram cortados pela intensa erosão que actuou durante o Pérmico (290 a 245 milhões de anos atrás). Os terrenos paleozóicos, tal como os mesozóicos que afloram a sul, são atravessados por numerosos filões de rochas ígneas (visíveis nos xistos e nos grauvaques encaixantes da praia do Murração, assim como noutros locais). Filões, por vezes, relacionados com a instalação do maciço subvulcânico de Monchique. As rochas da Era Mesozóica (com 245 a 65 milhões de anos) assentam sobre as paleozóicas em evidente discordância angular (como na praia do Telheiro ou na Ponta Ruiva). Os “grés de Silves” são as litologias mais antigas do Mesozóico. Essas rochas, do Período Triásico (com 245 a 208 milhões de anos), sedimentaram-se em ambientes diversos. Mudam-se os tempos, formam-se novas rochas, extinguem-se espécies, surgem novos seres… Afloram arenitos continentais (evidenciando condições de deposição sob clima semi-árido), evaporitos e outras rochas de ambientes de transição (lagunares ou estuarinos), calcários de ambientes francamente marinhos ou até basaltos a atestar a ocorrência de vulcanismo. Na área da Carrapateira encontram-se tufos e aglomerados vulcânicos provavelmente relacionados com a abertura do oceano Atlântico.
Durante os períodos Jurássico (208 a 145 milhões de anos atrás) e Cretácico (145 a 65 milhões de anos), bem como no início da Época Miocénica (há cerca de 24 milhões de anos), a sedimentação decorreu em ambientes aquáticos (de plataforma litoral e/ou de transição). Depositaram-se rochas calcárias e dolomíticas, por vezes com forte influência terrígena. A partir do Pliocénico (há 5.3 a 1.8 milhões de anos) o mar retirou-se do actual território algarvio.
Durante o Würm (há 10 a 80 mil anos) o mar estaria uma centena de metros abaixo do nível actual e, nas anteriores glaciações, a descida terá sido ainda mais significativa. Esses períodos frios estão associados ao aumento volumétrico dos glaciares polares e à descida do nível médio das águas oceânicas. Nos quentes períodos interglaciários as águas subiram devido ao degelo, voltando a inundar o continente, tal como se verifica desde o final da glaciação würmiana até à actualidade. A variação do nível médio das águas do mar gerou diversas praias levantadas ou terraços marinhos (como na área da Carrapateira ou do cabo de S. Vicente ). A plataforma de abrasão, que se estende ao longo do litoral numa faixa de cinco a vinte quilómetros de largura (apenas interrompida pela dissecação dos principais cursos de água), foi gerada desse modo.
A plataforma apresenta-se muitas vezes nua, mas nem sempre. Está geralmente coberta por uma delgada película de depósitos sedimentares (como na Carrapateira ou em Vila do Bispo): areias, pequenos seixos muito bem rolados ou cascalheiras. Sedimentos que surgem sob a forma de dunas consolidadas (como entre Dornas e Pedra do Cavaleiro) ou de areias de praias levantadas (como na superfície de abrasão do Cabo de S. Vicente).
… o mar começa
As águas revoltas, no seu permanente dinamismo, persistem ad eternum a sua acção erosiva. As vagas que embatem de encontro à costa, desagregando a pedra, ou as correntes e as marés, que remobilizam materiais rochosos, expressam-se em contínuas acções de meteorização e de transporte. Água mole em pedra dura… tanto bate até que fura!
A abrasão deve-se à ondulação, sobretudo a originada por ventos fortes e, em menor grau, às marés, apesar de outro factores interferirem nos processos erosivos: dissolução, impacto do spray ou acções biológicas. A abrasão é particularmente intensa durante os temporais, quando se geram ondas enormes que se lançam em sucessivos assaltos sobre a costa. A violência do mar atinge a sua maior expressão durante os meses das tempestades equinociais. O forte embate das ondas de encontro às arribas, devido aos ventos tempestuosos do quadrante oeste, faz saltar as águas até mais de 60 metros de altura. O choque das ondas tempestuosas de encontro às rochas atinge as dezenas de toneladas por metro quadrado. A rebentação pode-se ouvir a mais de 10 quilómetros de distância do litoral. É nessas ocasiões que se desfruta a melhor percepção do poder das águas, da sua capacidade de modelar a linha de costa, de esculpir a “pedra dura”. A eficácia das águas revoltas, da sua acção mecânica, é favorecida pelo efeito abrasivo dos detritos arrastados (areias, seixos e blocos) e incrementada pela erosão química, que se faz sentir sobretudo nas rochas carbonatadas (calcários e dolomias).
A acção das águas, o trabalho de sapa, faz-se sentir sobretudo na base das arribas, na região compreendida entre a preia-mar e a baixa-mar, onde se exprime sob a forma do cavado da onda. O ataque, ora manso ora furioso, das vagas atlânticas gera íngremes penhascos, onde as cornijas de sapa estão pouco desenvolvidas ou mesmo ausentes. Mas a erosão diferencial também origina arcos (como o de Caixões, entre Carrapateira e Vila do Bispo), filões exumados (os designados “mata-cães”) ou furnas (como a da Gralheiras, junto à praia da Amoreira). Estes modelados são o resultado da sapa que se desenvolve preferencialmente ao longo de superfícies de fraqueza da rocha (fracturas ou filões).
As diversas agulhas, torres e ilhéus de rocha que surgem amiúde ao longo da costa também constituem um testemunho da acção erosiva das águas. Separados de terra pelo rápido avanço do mar, estes afloramentos são relevos de dureza que, como o nome indica, resistiram melhor à erosão. A Pedra da Galé, que prolonga o Pontal da Carrapateira para ocidente, é apenas um exemplo entre muitos. Logo a sul destacam-se diversas ilhotas como a Pedra de Valverde, a Ilha do Forno, a Pedra da Manteiga, a Pedra do Cavaleiro ou a Pedra da Gaivota. Os sectores onde se encontra grande número de “ilhotas” de dureza estendem-se da Ponta da Atalaia até à Ponta da Arrifana e do Pontal da Carrapateira até à Ponta do Telheiro. A água, esse grande escultor, também é responsável pelas formas zoomórficas, antropomórficas ou outras talhadas na pedra.
Ao longo da costa escarpada sucedem-se estreitas “praias de calhau”, na base dos penhascos, ou areais mais extensos, na foz das linhas de água. Algumas reentrâncias estão fechadas por cordões litorais e entulhadas (como na Praia da Bordeira), acompanhadas por medos e medões.
Esta costa, dita Vicentina, ainda permite a (re)ligação à Terra antiga, encontrar os elementos na sua pureza e liberdade ancestrais. O embate das ondas de encontro aos penhascos ou o sopro dos ventos no seu corrupio. Sons de uma terra que se confunde com o mar em pitorescas panorâmicas de pedra e de água. Vão, sintam, oiçam e vejam! A Costa Vicentina é um convite a ver com olhos de ver.
Costa Vicentina © João Mariano
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LUGARES pouco comuns - Uncommon places (2000)
Fotografia: João Mariano
Textos: João Mariano (Lugares pouco comuns) e Pedro Cuiça (Costa Vicentina - Terra, mar e imensidão)
2 comentários:
A Costa Vicentina é de facto uma oportunidade para o fascínio
bjts
Grande, grande post.
Gostei mesmo de ler.
Já está encomendado. Espero aprender muito mais sobre a Costa Vicentina com a leitura desse livro que mesmo sem conhecer ainda, só pelo excerto e fotos que vi no site no J. Mariano, me parece um projecto de estrondo, que muito vou apreciar.
Abraço.
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