[Primeira parte da comunicação apresentada no IV Seminario Internacional sobre Senderismo y Territorio en Europa que decorreu, de 5 a 7 de Junho de 2008, em Málaga ● O trabalho em causa, não tendo sido concebido com base na realidade espeleológica, enquadra a prática de actividades de ar livre em Portugal, entre as quais se inclui a espeleologia.]
I. Enquadramento
As actividades de ar livre em Portugal, como a marcha e a escalada, surgiram no final do século XIX, com iniciativas como a Expedição Científica à Serra da Estrela (1881), em que se dá o primeiro registo de uma subida ao Cântaro Magro. O turismo era já apontado em 1898, por Anselmo de Andrade, como uma actividade a desenvolver, como catalisador da economia nacional, mas só no início do século XX é que se instituíram as primeiras estruturas oficiais de turismo (1911) e, simultaneamente, se organizaram as actividades e equipamentos complementares. Só a partir da década de 60 é que o turismo começou a apresentar uma expressão significativa no conjunto das actividades nacionais, facto atribuído à conjuntura económica (Grandes Guerras Mundiais e Guerra Civil de Espanha), bem como à condução da vida portuguesa por uma política pouco dada a mudanças.
As actividades de ar livre revelaram um significativo incremento, sobretudo a partir da década de 80, fruto do crescente interesse pelos, desde então, designados “desportos de aventura”. De facto, ao contrário do marasmo a que nos tinham habituado durante décadas, o grande interesse que passaram a suscitar é um dado novo. O contacto com a natureza tornou-se primordial favorecendo o surgimento, a par de práticas mais antigas, de novas abordagens do meio. A multiplicidade de actividades de ar livre é estonteante e não pára de aumentar: campismo, pedestrianismo, montanhismo, bicicleta de montanha (moutain bike) ou bicicleta todo-o-terreno (BTT), orientação desportiva, espeleologia, escalada clássica, escalada desportiva, bouldering, corrida de aventura, esqui, passeios equestres, mushing, paintball, canoagem, rafting, hidrospeed, vela, windsurf, surf, kitesurf, bodyboard, mergulho, canionismo (canyoning), coastering, parapente, asa-delta, balonismo, pára-quedismo, etc..
O número de praticantes é indeterminado, mas indubitavelmente elevado. A popularidade de actividades de ar livre nunca foi maior. Entre 2001 e 2007 foram fundadas 415 empresas de animação turística (dedicadas a desportos de natureza), com alvarás atribuídos pela Direcção-Geral de Turismo. Um indicador claro da popularidade destas actividades.
A sociedade evoluiu para modelos que implementam o usufruto de tempos livres, o exercício físico e a saúde, a (re)ligação à natureza e a busca de aventura. Os meios de transporte permitem deslocações cada vez mais rápidas e o gozo desses tempos de lazer é assumido como um direito adquirido. A necessidade de evasão, a busca de ocupações radicalmente diversas das que se experimentam na rotina do dia-a-dia, a fuga ao sedentarismo e à “selva urbana”, são algumas das motivações responsáveis pela crescente importância que as áreas naturais e as actividades de ar livre apresentam como alternativa de mudança para ritmos retemperadores do corpo e da alma.
As actividades de ar livre eram consideradas, há três décadas, uma ocupação dos tempos livres sem grande expressão; uma forma de recreio e de lazer em contacto com a natureza, pouco generalizada apesar de incentivada, nomeadamente pelos resultados benéficos para a saúde física e mental dos praticantes. O aparecimento de inúmeras abordagens do meio, o aumento exponencial do número de praticantes e o surgimento da profissionalização, entre outros indicadores, conduziu à inevitável integração dessas actividades na problemática da conservação da natureza, nomeadamente no que concerne ao acesso.
Os pioneiros de finais do século XIX dificilmente poderiam prever que as actividades de ar livre iriam sofrer um incremento exponencial, praticar-se em múltiplos moldes e transformar-se numa praxis acessível a todas as camadas sociais e etárias. Ainda não tinha sido montada uma indústria e um mercado específicos, dedicados a essas formas de recreio que passaram a atrair multidões. Esta revolução do ar livre estimulou o surgimento de muitas modalidades, bem como o desenvolvimento e a maturação de outras tantas, possibilitando nomeadamente a profissionalização na área. O outro lado da moeda, muitas vezes ignorado ou relegado para segundo plano, prende-se com os impactes ambientais resultantes dessas práticas.
Ar livre mas condicionado
Os locais de difícil acesso, tradicionalmente pouco frequentados pelo Homem, deixaram de o ser. Com efeito, a protecção devida à inacessibilidade do terreno já não funciona face ao incremento dos desportos de aventura, especialmente quando a construção de novas vias de comunicação, só por si, facilita o acesso e acessibilidades. Os locais isolados e agrestes, os últimos redutos da natureza, os locais onde ainda se encontram valores patrimoniais - geológicos, faunísticos e florísticos - mais ou menos bem preservados, deixam de o ser e passam a constituir os spots alvo de diversas actividades: montanhas, escarpados, canyons, grutas, etc..
A pretensa massificação das actividades de ar livre é vista, por muitos praticantes (e não só), como exagerada. Quem percorre vários quilómetros a pé nos planaltos da Serra da Estrela sem ver vivalma poderá ter essa percepção, mas quem já presenciou grupos numerosos de excursionistas barulhentos talvez não pense da mesma forma. A grande afluência de praticantes já se verificou em várias iniciativas e a polémica não se fez esperar. Recorde-se, como exemplo, a XII Marcha de Montanha, protagonizada pelos clubes de ar livre escolares, realizada, no dia 6 de Junho de 1992, num trilho do Lindoso, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). A marcha envolveu 40 escolas preparatórias e secundárias, 400 professores, mais de 2 000 alunos e cerca de 50 autocarros. No entanto, é fundamental não confundir a excepção com a regra e, por outro lado, será de elementar bom senso qualificar e quantificar os impactes em jogo para, só aí, tirar as devidas elações. Quais os impactes envolvidos numa única marcha com cerca de 2 500 pessoas (com características próprias), de duração limitada, num trajecto com determinadas características, que passa por uma envolvente particular, sob determinadas condições climatéricas e época do ano? As variáveis são múltiplas mas será certamente difícil imputar consequências trágicas ao acto de muitos praticantes, devidamente “enquadrados”, andarem a pé durante uma manhã ao longo de caminhos ou estradas que, inclusivamente, estejam abertos a trânsito motorizado!
As actividades de ar livre estão inevitavelmente relacionadas com as questões de conservação do meio no qual se praticam, mas não se podem dissociar também das questões referentes à segurança das pessoas e bens, tal como de outras questões igualmente importantes. (…)
As actividades de ar livre testam os limites físicos e psicológicos dos indivíduos, desenvolvem e devolvem de algum modo o sentido da existência, mas também comportam riscos. Para além dos incidentes e acidentes ocorridos no terreno, geram tribalismos, o aparecimento de grupos que se identificam não só pelo vocabulário, onde o estrangeirismo muitas vezes domina, como pelas roupas/marcas que usam. O rápido desenvolvimento dos desportos de aventura veio introduzir uma panóplia de novos hábitos, comportamentos e atitudes, sobretudo na população mais jovem. Devido à multiplicidade de componentes e à complexidade das interligações em jogo é fundamental promover estudos multidisciplinares, tal como implementar mecanismos de monitorização das actividades e de quantificação dos fenómenos para que se possa atingir o rigor exigido nos estudos sobre estas matérias. Para não incorrer em generalizações prematuras ou conclusões infundadas, há que ter em consideração a grande diversidade de actividades existentes (em permanente crescimento), as suas especificidades e o díspar número de adesão às mesmas. A avaliação das capacidades de carga e a monitorização de cada actividade e/ou conjunto de actividades nos locais de implementação são de primordial importância para uma gestão sustentada e consensual do vasto condomínio que é a natureza.
O fenómeno da “massificação”, associado às novas abordagens turísticas, não passou despercebido às entidades oficiais e a associações de diversa índole, tendo-se constatado a necessidade de desenvolver medidas consentâneas. A legislação ou a produção de normativas surgiu como uma forma de estabelecer regras num sector onde não as havia, muitas vezes enveredando pela implementação de condicionantes e, não raro, pelas proibições. Passados alguns anos sobre a implementação de medidas, a questão base continua a ser: como conciliar de forma adequada a prática de actividades de ar livre com a conservação da natureza?
A massificação dos terrenos de aventura será, sem dúvida, causadora de diversos impactes ambientais: pisoteio, incremento da erosão, destruição de vegetação, perturbação da fauna, detritos, risco de incêndio, etc. Mais, os impactes ambientais das actividades de ar livre deixaram de ser virtuais para se concretizarem no terreno. Actualmente considera-se que cada pessoa desempenha um papel, mais ou menos importante, nas alterações que se processam no meio: apesar das contribuições individuais serem pequenas ou mesmo insignificantes a sua soma poderá atingir proporções bastante significativas. Daí a importância da determinação de capacidades de carga, entre outros indicadores, com base em estudos de impacte ambiental idóneos. Só dessa forma se poderão criar planos de gestão e regulamentos adequados, que tenham em consideração a conservação da natureza e não descurem a liberdade de praticar desporto ao ar livre.
"Não deixar mais que pegadas e não tirar mais que fotografias" tornou-se uma fórmula ultrapassada, porque insuficiente, face aos problemas associados à prática de actividades de ar livre, sendo exigidas medidas concretas, fundamentadas e eficientes que resolvam o paradoxo de como proteger e simultaneamente divulgar. Torna-se evidente que a prática de actividades de ar livre terá de passar pelo diálogo entre os diversos intervenientes a fim de se atingir uma gestão coerente e equilibrada do património natural, bem como a salvaguarda do direito inalienável de usufruir os vastos espaços de ar livre, das formas mais livre e, simultaneamente, mais “ecológica” possíveis.
Áreas Protegidas
As áreas geralmente mais procuradas para a prática de actividades de ar livre coincidem com as pertencentes à Rede Nacional de Áreas Protegidas. Destacando-se, pela afluência, as zonas litorais e as inseridas ou próximas das áreas metropolitanas, de que os parques naturais da Ria Formosa (Algarve) ou de Sintra-Cascais (Península de Lisboa) constituem, respectivamente, bons exemplos. Na generalidade das áreas protegidas verifica-se que o fluxo sazonal é massivo, ocorrendo essencialmente no Verão (caso do Parque Natural da Ria Formosa), no Inverno (Parque Natural da Serra da Estrela) ou aos fins-de-semana e feriados (Parque Natural da Sintra-Cascais ).
As áreas protegidas são os destinos mais procurados por professores e/ou monitores para a realização de visitas de estudo ou acções de educação/interpretação ambiental, já que geram mais expectativas no que concerne à qualidade do ambiente. Essas áreas apresentam um vasto potencial educativo mas o objectivo da educação ambiental, a preservação das espécies e dos sistemas naturais ou semi-naturais que lhes servem de suporte, poderá degenerar no efeito oposto. Levar pessoas a esses locais de grande valor ecológico ou paisagístico poderá contribuir para aumentar os factores de perturbação dos ecossistemas e/ou desfigurar a paisagem. Se algumas áreas protegidas podem receber uma carga de visitantes elevada, em certos locais ou trajectos determinados, outras são muito frágeis no que respeita à presença humana.
O turismo activo pode contribuir para a dinamização das Áreas Protegidas, mas também pode ser, e é muitas vezes, causador de impactes ambientais. Se cada turista colher uma flor, após algum tempo, a vegetação ficará certamente empobrecida. Uma flor colhida fará o prazer fugaz de um indivíduo, mas uma flor viva, no seio da natureza, poderá constituir a delícia de inúmeros admiradores. Por outro lado, os locais são frequentemente invadidos por veículos motorizados e turistas ruidosos. Quebrando-se o silêncio, a fauna pode ser gravemente perturbada. Facilmente se constata que, por vezes, não basta levar o saquinho do lixo até um contentor ou vestir roupas de "cores ecológicas".
O turismo constitui um processo complexo, com relações causa-efeito nem sempre fáceis de determinar e que vão para além da conservação da natureza. Este pode conduzir, igualmente, a transformações significativas no tecido económico e social das regiões onde se processa. Com consequências positivas (por ex. na criação de emprego) e/ou negativas (como a adulteração dos usos e costumes locais), dependendo o seu resultado final essencialmente do modelo de desenvolvimento regional adoptado.
A questão base consiste na forma de conciliar a divulgação e a promoção de iniciativas de ar livre com a conservação da natureza. Deverá ser estabelecido um numerus clausus ou proibir o acesso a locais de grande beleza e/ou valor patrimonial? A tendência actual consiste no estabelecimento de diferentes níveis de protecção (leia-se condicionantes ou interdições) para cada área, de acordo com a sua classificação na Rede Nacional de Áreas Protegidas, e a cada sub-área, consoante os valores a preservar.
Uma das vocações das Áreas Protegidas consiste em permitir ao utente a possibilidade de usufruto da natureza. Contudo, os impactes ambientais resultantes da presença antrópica obrigam a uma conveniente gestão destas áreas. Estranho equilíbrio muitas vezes ambíguo e que urge resolver. O turismo de ar livre é, por um lado, incentivado e, por outro, refreado, limitado ou, mesmo, proibido, por vezes sem bases científicas ou que fundamentem as decisões tomadas.
Conscientes da importância das actividades de ar livre, os governantes tomaram medidas tendentes ao enquadramento das mesmas. Os secretários de Estado do Ambiente e do Turismo assinaram, no dia 12 de Março de 1998, o protocolo relativo ao Programa Nacional de Turismo de Natureza: uma parceria estratégica entre os ministérios do Ambiente e da Economia a fim de gerir a actividade turística em Áreas Protegidas.
O programa foi estabelecido por uma comissão paritária composta por representantes do Instituto de Conservação da Natureza (ICN), da Direcção-Geral de Turismo (DGT) e do Fundo de Turismo (FT). O plano surgiu da necessidade de desmistificar percepções erróneas, demonstrando que nas áreas protegidas é possível conciliar a conservação da natureza com uma actividade turística sustentada. Essa seria, aliás, uma forma de atenuar as assimetrias regionais, criando emprego e promovendo o desenvolvimento local. Na prática, o programa consubstanciou-se na implementação de alguns condicionalismos e outras tantas proibições. E se o mesmo não tem merecido mais contestação por parte de federações, clubes, empresas e praticantes é porque, na prática, grande parte das medidas não são aplicadas, nomeadamente devido à deficiente vigilância das Áreas Protegidas.
Por outro lado, não podemos esquecer que a prática de actividades de ar livre não se circunscreve às Áreas Protegidas, tornando-se igualmente necessário salvaguardar as restantes áreas. Nesse sentido os ambientalistas têm desempenhado um papel importante, tal como os próprios praticantes de actividades de ar livre. No entanto, a sua actuação nem sempre tem sido pacífica: é fácil compreender que os fundamentalismos e extremismos de ambas as partes não são de todo saudáveis…
Os espaços naturais, em geral, e as Áreas Protegidas, em particular, surgem como destinos turísticos privilegiados, sendo o designado "turismo de natureza" s.l. cada vez mais indissociável do tempo livre e das actividades de recreio e lazer. O crescente interesse pelo "natural" levanta, no entanto, problemas de conservação difíceis de gerir e de conciliar com os interesses dos praticantes e das próprias populações. A tendência actual, na linha do Plano Nacional de Turismo da Natureza (PNTN), pretende que o turismo venha contribuir, por um lado, para o desenvolvimento económico das regiões e, por outro, para a conservação da natureza. No entanto, ainda há um largo caminho a percorrer para atingir esse desiderato, nomeadamente no que concerne a recorrentes ambiguidades e contradições que ameaçam inquinar o processo e criar anticorpos entre aqueles que sonham com a liberdade dos vastos espaços de ar livre.
(...)
I. Enquadramento
As actividades de ar livre em Portugal, como a marcha e a escalada, surgiram no final do século XIX, com iniciativas como a Expedição Científica à Serra da Estrela (1881), em que se dá o primeiro registo de uma subida ao Cântaro Magro. O turismo era já apontado em 1898, por Anselmo de Andrade, como uma actividade a desenvolver, como catalisador da economia nacional, mas só no início do século XX é que se instituíram as primeiras estruturas oficiais de turismo (1911) e, simultaneamente, se organizaram as actividades e equipamentos complementares. Só a partir da década de 60 é que o turismo começou a apresentar uma expressão significativa no conjunto das actividades nacionais, facto atribuído à conjuntura económica (Grandes Guerras Mundiais e Guerra Civil de Espanha), bem como à condução da vida portuguesa por uma política pouco dada a mudanças.
As actividades de ar livre revelaram um significativo incremento, sobretudo a partir da década de 80, fruto do crescente interesse pelos, desde então, designados “desportos de aventura”. De facto, ao contrário do marasmo a que nos tinham habituado durante décadas, o grande interesse que passaram a suscitar é um dado novo. O contacto com a natureza tornou-se primordial favorecendo o surgimento, a par de práticas mais antigas, de novas abordagens do meio. A multiplicidade de actividades de ar livre é estonteante e não pára de aumentar: campismo, pedestrianismo, montanhismo, bicicleta de montanha (moutain bike) ou bicicleta todo-o-terreno (BTT), orientação desportiva, espeleologia, escalada clássica, escalada desportiva, bouldering, corrida de aventura, esqui, passeios equestres, mushing, paintball, canoagem, rafting, hidrospeed, vela, windsurf, surf, kitesurf, bodyboard, mergulho, canionismo (canyoning), coastering, parapente, asa-delta, balonismo, pára-quedismo, etc..
O número de praticantes é indeterminado, mas indubitavelmente elevado. A popularidade de actividades de ar livre nunca foi maior. Entre 2001 e 2007 foram fundadas 415 empresas de animação turística (dedicadas a desportos de natureza), com alvarás atribuídos pela Direcção-Geral de Turismo. Um indicador claro da popularidade destas actividades.
A sociedade evoluiu para modelos que implementam o usufruto de tempos livres, o exercício físico e a saúde, a (re)ligação à natureza e a busca de aventura. Os meios de transporte permitem deslocações cada vez mais rápidas e o gozo desses tempos de lazer é assumido como um direito adquirido. A necessidade de evasão, a busca de ocupações radicalmente diversas das que se experimentam na rotina do dia-a-dia, a fuga ao sedentarismo e à “selva urbana”, são algumas das motivações responsáveis pela crescente importância que as áreas naturais e as actividades de ar livre apresentam como alternativa de mudança para ritmos retemperadores do corpo e da alma.
As actividades de ar livre eram consideradas, há três décadas, uma ocupação dos tempos livres sem grande expressão; uma forma de recreio e de lazer em contacto com a natureza, pouco generalizada apesar de incentivada, nomeadamente pelos resultados benéficos para a saúde física e mental dos praticantes. O aparecimento de inúmeras abordagens do meio, o aumento exponencial do número de praticantes e o surgimento da profissionalização, entre outros indicadores, conduziu à inevitável integração dessas actividades na problemática da conservação da natureza, nomeadamente no que concerne ao acesso.
Os pioneiros de finais do século XIX dificilmente poderiam prever que as actividades de ar livre iriam sofrer um incremento exponencial, praticar-se em múltiplos moldes e transformar-se numa praxis acessível a todas as camadas sociais e etárias. Ainda não tinha sido montada uma indústria e um mercado específicos, dedicados a essas formas de recreio que passaram a atrair multidões. Esta revolução do ar livre estimulou o surgimento de muitas modalidades, bem como o desenvolvimento e a maturação de outras tantas, possibilitando nomeadamente a profissionalização na área. O outro lado da moeda, muitas vezes ignorado ou relegado para segundo plano, prende-se com os impactes ambientais resultantes dessas práticas.
Ar livre mas condicionado
Os locais de difícil acesso, tradicionalmente pouco frequentados pelo Homem, deixaram de o ser. Com efeito, a protecção devida à inacessibilidade do terreno já não funciona face ao incremento dos desportos de aventura, especialmente quando a construção de novas vias de comunicação, só por si, facilita o acesso e acessibilidades. Os locais isolados e agrestes, os últimos redutos da natureza, os locais onde ainda se encontram valores patrimoniais - geológicos, faunísticos e florísticos - mais ou menos bem preservados, deixam de o ser e passam a constituir os spots alvo de diversas actividades: montanhas, escarpados, canyons, grutas, etc..
A pretensa massificação das actividades de ar livre é vista, por muitos praticantes (e não só), como exagerada. Quem percorre vários quilómetros a pé nos planaltos da Serra da Estrela sem ver vivalma poderá ter essa percepção, mas quem já presenciou grupos numerosos de excursionistas barulhentos talvez não pense da mesma forma. A grande afluência de praticantes já se verificou em várias iniciativas e a polémica não se fez esperar. Recorde-se, como exemplo, a XII Marcha de Montanha, protagonizada pelos clubes de ar livre escolares, realizada, no dia 6 de Junho de 1992, num trilho do Lindoso, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). A marcha envolveu 40 escolas preparatórias e secundárias, 400 professores, mais de 2 000 alunos e cerca de 50 autocarros. No entanto, é fundamental não confundir a excepção com a regra e, por outro lado, será de elementar bom senso qualificar e quantificar os impactes em jogo para, só aí, tirar as devidas elações. Quais os impactes envolvidos numa única marcha com cerca de 2 500 pessoas (com características próprias), de duração limitada, num trajecto com determinadas características, que passa por uma envolvente particular, sob determinadas condições climatéricas e época do ano? As variáveis são múltiplas mas será certamente difícil imputar consequências trágicas ao acto de muitos praticantes, devidamente “enquadrados”, andarem a pé durante uma manhã ao longo de caminhos ou estradas que, inclusivamente, estejam abertos a trânsito motorizado!
As actividades de ar livre estão inevitavelmente relacionadas com as questões de conservação do meio no qual se praticam, mas não se podem dissociar também das questões referentes à segurança das pessoas e bens, tal como de outras questões igualmente importantes. (…)
As actividades de ar livre testam os limites físicos e psicológicos dos indivíduos, desenvolvem e devolvem de algum modo o sentido da existência, mas também comportam riscos. Para além dos incidentes e acidentes ocorridos no terreno, geram tribalismos, o aparecimento de grupos que se identificam não só pelo vocabulário, onde o estrangeirismo muitas vezes domina, como pelas roupas/marcas que usam. O rápido desenvolvimento dos desportos de aventura veio introduzir uma panóplia de novos hábitos, comportamentos e atitudes, sobretudo na população mais jovem. Devido à multiplicidade de componentes e à complexidade das interligações em jogo é fundamental promover estudos multidisciplinares, tal como implementar mecanismos de monitorização das actividades e de quantificação dos fenómenos para que se possa atingir o rigor exigido nos estudos sobre estas matérias. Para não incorrer em generalizações prematuras ou conclusões infundadas, há que ter em consideração a grande diversidade de actividades existentes (em permanente crescimento), as suas especificidades e o díspar número de adesão às mesmas. A avaliação das capacidades de carga e a monitorização de cada actividade e/ou conjunto de actividades nos locais de implementação são de primordial importância para uma gestão sustentada e consensual do vasto condomínio que é a natureza.
O fenómeno da “massificação”, associado às novas abordagens turísticas, não passou despercebido às entidades oficiais e a associações de diversa índole, tendo-se constatado a necessidade de desenvolver medidas consentâneas. A legislação ou a produção de normativas surgiu como uma forma de estabelecer regras num sector onde não as havia, muitas vezes enveredando pela implementação de condicionantes e, não raro, pelas proibições. Passados alguns anos sobre a implementação de medidas, a questão base continua a ser: como conciliar de forma adequada a prática de actividades de ar livre com a conservação da natureza?
A massificação dos terrenos de aventura será, sem dúvida, causadora de diversos impactes ambientais: pisoteio, incremento da erosão, destruição de vegetação, perturbação da fauna, detritos, risco de incêndio, etc. Mais, os impactes ambientais das actividades de ar livre deixaram de ser virtuais para se concretizarem no terreno. Actualmente considera-se que cada pessoa desempenha um papel, mais ou menos importante, nas alterações que se processam no meio: apesar das contribuições individuais serem pequenas ou mesmo insignificantes a sua soma poderá atingir proporções bastante significativas. Daí a importância da determinação de capacidades de carga, entre outros indicadores, com base em estudos de impacte ambiental idóneos. Só dessa forma se poderão criar planos de gestão e regulamentos adequados, que tenham em consideração a conservação da natureza e não descurem a liberdade de praticar desporto ao ar livre.
"Não deixar mais que pegadas e não tirar mais que fotografias" tornou-se uma fórmula ultrapassada, porque insuficiente, face aos problemas associados à prática de actividades de ar livre, sendo exigidas medidas concretas, fundamentadas e eficientes que resolvam o paradoxo de como proteger e simultaneamente divulgar. Torna-se evidente que a prática de actividades de ar livre terá de passar pelo diálogo entre os diversos intervenientes a fim de se atingir uma gestão coerente e equilibrada do património natural, bem como a salvaguarda do direito inalienável de usufruir os vastos espaços de ar livre, das formas mais livre e, simultaneamente, mais “ecológica” possíveis.
Áreas Protegidas
As áreas geralmente mais procuradas para a prática de actividades de ar livre coincidem com as pertencentes à Rede Nacional de Áreas Protegidas. Destacando-se, pela afluência, as zonas litorais e as inseridas ou próximas das áreas metropolitanas, de que os parques naturais da Ria Formosa (Algarve) ou de Sintra-Cascais (Península de Lisboa) constituem, respectivamente, bons exemplos. Na generalidade das áreas protegidas verifica-se que o fluxo sazonal é massivo, ocorrendo essencialmente no Verão (caso do Parque Natural da Ria Formosa), no Inverno (Parque Natural da Serra da Estrela) ou aos fins-de-semana e feriados (Parque Natural da Sintra-Cascais ).
As áreas protegidas são os destinos mais procurados por professores e/ou monitores para a realização de visitas de estudo ou acções de educação/interpretação ambiental, já que geram mais expectativas no que concerne à qualidade do ambiente. Essas áreas apresentam um vasto potencial educativo mas o objectivo da educação ambiental, a preservação das espécies e dos sistemas naturais ou semi-naturais que lhes servem de suporte, poderá degenerar no efeito oposto. Levar pessoas a esses locais de grande valor ecológico ou paisagístico poderá contribuir para aumentar os factores de perturbação dos ecossistemas e/ou desfigurar a paisagem. Se algumas áreas protegidas podem receber uma carga de visitantes elevada, em certos locais ou trajectos determinados, outras são muito frágeis no que respeita à presença humana.
O turismo activo pode contribuir para a dinamização das Áreas Protegidas, mas também pode ser, e é muitas vezes, causador de impactes ambientais. Se cada turista colher uma flor, após algum tempo, a vegetação ficará certamente empobrecida. Uma flor colhida fará o prazer fugaz de um indivíduo, mas uma flor viva, no seio da natureza, poderá constituir a delícia de inúmeros admiradores. Por outro lado, os locais são frequentemente invadidos por veículos motorizados e turistas ruidosos. Quebrando-se o silêncio, a fauna pode ser gravemente perturbada. Facilmente se constata que, por vezes, não basta levar o saquinho do lixo até um contentor ou vestir roupas de "cores ecológicas".
O turismo constitui um processo complexo, com relações causa-efeito nem sempre fáceis de determinar e que vão para além da conservação da natureza. Este pode conduzir, igualmente, a transformações significativas no tecido económico e social das regiões onde se processa. Com consequências positivas (por ex. na criação de emprego) e/ou negativas (como a adulteração dos usos e costumes locais), dependendo o seu resultado final essencialmente do modelo de desenvolvimento regional adoptado.
A questão base consiste na forma de conciliar a divulgação e a promoção de iniciativas de ar livre com a conservação da natureza. Deverá ser estabelecido um numerus clausus ou proibir o acesso a locais de grande beleza e/ou valor patrimonial? A tendência actual consiste no estabelecimento de diferentes níveis de protecção (leia-se condicionantes ou interdições) para cada área, de acordo com a sua classificação na Rede Nacional de Áreas Protegidas, e a cada sub-área, consoante os valores a preservar.
Uma das vocações das Áreas Protegidas consiste em permitir ao utente a possibilidade de usufruto da natureza. Contudo, os impactes ambientais resultantes da presença antrópica obrigam a uma conveniente gestão destas áreas. Estranho equilíbrio muitas vezes ambíguo e que urge resolver. O turismo de ar livre é, por um lado, incentivado e, por outro, refreado, limitado ou, mesmo, proibido, por vezes sem bases científicas ou que fundamentem as decisões tomadas.
Conscientes da importância das actividades de ar livre, os governantes tomaram medidas tendentes ao enquadramento das mesmas. Os secretários de Estado do Ambiente e do Turismo assinaram, no dia 12 de Março de 1998, o protocolo relativo ao Programa Nacional de Turismo de Natureza: uma parceria estratégica entre os ministérios do Ambiente e da Economia a fim de gerir a actividade turística em Áreas Protegidas.
O programa foi estabelecido por uma comissão paritária composta por representantes do Instituto de Conservação da Natureza (ICN), da Direcção-Geral de Turismo (DGT) e do Fundo de Turismo (FT). O plano surgiu da necessidade de desmistificar percepções erróneas, demonstrando que nas áreas protegidas é possível conciliar a conservação da natureza com uma actividade turística sustentada. Essa seria, aliás, uma forma de atenuar as assimetrias regionais, criando emprego e promovendo o desenvolvimento local. Na prática, o programa consubstanciou-se na implementação de alguns condicionalismos e outras tantas proibições. E se o mesmo não tem merecido mais contestação por parte de federações, clubes, empresas e praticantes é porque, na prática, grande parte das medidas não são aplicadas, nomeadamente devido à deficiente vigilância das Áreas Protegidas.
Por outro lado, não podemos esquecer que a prática de actividades de ar livre não se circunscreve às Áreas Protegidas, tornando-se igualmente necessário salvaguardar as restantes áreas. Nesse sentido os ambientalistas têm desempenhado um papel importante, tal como os próprios praticantes de actividades de ar livre. No entanto, a sua actuação nem sempre tem sido pacífica: é fácil compreender que os fundamentalismos e extremismos de ambas as partes não são de todo saudáveis…
Os espaços naturais, em geral, e as Áreas Protegidas, em particular, surgem como destinos turísticos privilegiados, sendo o designado "turismo de natureza" s.l. cada vez mais indissociável do tempo livre e das actividades de recreio e lazer. O crescente interesse pelo "natural" levanta, no entanto, problemas de conservação difíceis de gerir e de conciliar com os interesses dos praticantes e das próprias populações. A tendência actual, na linha do Plano Nacional de Turismo da Natureza (PNTN), pretende que o turismo venha contribuir, por um lado, para o desenvolvimento económico das regiões e, por outro, para a conservação da natureza. No entanto, ainda há um largo caminho a percorrer para atingir esse desiderato, nomeadamente no que concerne a recorrentes ambiguidades e contradições que ameaçam inquinar o processo e criar anticorpos entre aqueles que sonham com a liberdade dos vastos espaços de ar livre.
(...)
Sem comentários:
Enviar um comentário