[Jornal O Algarve · Ano 87º, nº 4369, 9 a 15/Fev. 1995]
Gruta da Senhora @P. Cuiça (2008)
Ao visitar o Cerro da Cabeça, no passado mês de Setembro [1994], local que conheci em 1982, onde me iniciei na “espeleologia” e a que regresso sempre que tal me é permitido, tive a infelicidade de constatar a destruição irremediável de uma das mais belas grutas aí existentes. Para que se compreenda a gravidade do ocorrido e o processo que levou a tal situação será conveniente efectuar uma breve abordagem do historial da gruta em questão.
A Santa Casa da Misericórdia de Moncarapacho há mais de uma década que se propõe abrir uma gruta ao turismo no Cerro da Cabeça. Segundo o Provedor da Santa Casa da Misericórdia, (…), o “desejo da Misericórdia dispor de uma gruta em condições de ser visitada pelos turistas e que servisse como fonte de receitas para auxiliar a manutenção do seu lar de idosos e outras obras de carácter social” (sic), bem como o facto de os “estrangeiros” procurarem “as grutas do Cerro da Cabeça sem lhe poder dar uma oportunidade de as visitar, o que é pena e em nada nos prestigia” (sic) foram as motivações que levaram à tentativa de abertura de uma gruta ao turismo (in Grutas do Cerro da Cabeça, 1985). Apesar de opiniões contrárias a esse empreendimento (nomeadamente por parte de membros da Sociedade Portuguesa de Espeleologia (SPE), devido, entre outros factores, às pequenas dimensões que as cavernas aí apresentam, a Misericórdia não se demoveu do seu objectivo.
O Grupo de Espeleologia e Arqueologia de Moncarapacho (GEAM), que posteriormente se passou a designar Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve (CEEAA), na dependência directa da Misericórdia, iria escolher para esse fim uma cavidade, descoberta nos anos 50, localizada na base da vertente sul do Cerro da Cabeça (…). Essa escolha deveu-se ao facto de elementos do CEEAA, após trabalhos de desobstrução, em 1977, terem descoberto nessa cavidade novas galerias de “invulgar beleza” (ibidem) o que fez com que esta se tornasse a gruta de maiores dimensões existente no Cerro da Cabeça e suas imediações. A caverna em causa, devido ao grande interesse que despertou foi baptizada de “Gruta da Senhora em homenagem à benemérita doadora do Cerro da Cabeça à Misericórdia de Moncarapacho, D. Maria Rosa Dias de Mendonça” (ibidem).
Na sequência da descoberta de 1977, “a Misericórdia como medida de prudência mandou encerrar a gruta” (ibidem) por meio de um gradeamento e pediu apoio à Comissão Regional do Turismo do Algarve para a abertura da mesma ao turismo. Perante a ausência de resposta satisfatória por parte da Comissão do Turismo, a Misericórdia resolveu publicar o projecto apresentado àquela instituição para que este não ficasse no “olvídio das gavetas das secretarias de Estado, para mais tratando-se de um trabalho sério” (ibidem). É assim que, em 1985, saiu a público o opúsculo Grutas do Cerro da Cabeça - A Gruta da Senhora, para possível aproveitamento turístico. Na introdução, J. Fernandes Mascarenhas afirmava que “a vontade de quem está à frente da Santa Casa da Misericórdia continue firme e na disposição de abrir a referida gruta na primeira oportunidade, nem que seja recorrendo a uma empresa particular” (sic). Não foi necessário recorrer a empresas privadas.
Com a entrada de Portugal na, então, Comunidade Económica Europeia (CEE) chegou o momento há tanto tempo esperado; o projecto de abertura da Gruta da Senhora ao turismo seguiu os meandros burocráticos e as verbas necessárias foram desbloqueadas via Bruxelas.
O projecto em causa, um trabalho do [então] presidente do CEEAA (…) consistia sinteticamente em:
1) Retirar a camada de “solo”, ou parte dela, existente no interior da gruta de forma a aumentar substancialmente as dimensões da mesma;
2) Espalhar no exterior, sobre toda a área da cavidade, uma camada de argila coberta por outra de cascalho, que “regadas periodicamente” ajudariam “a alimentação hídrica das concreções”;
3) Estabelecimento do percurso turístico com consequentes trabalhos de iluminação, “reactivação de antigas cascatas” e “criação de lagos e repuxos”;
4) Criação de instalações de apoio no exterior (ibidem).
Ao fim ao cabo, tratou-se do projecto apresentado à Comissão Regional do Turismo do Algarve a que se acrescentou a novidade de, a par da abertura da gruta ao turismo, decorrerem cursos de formação profissional. Eureka, ou melhor, Europa… Os trabalhos iniciaram-se com a instalação de uma estrutura metálica (elevador) provida de uma caixa para retirar os depósitos sedimentares do interior da gruta (essencialmente argilas) e espalhá-las no exterior; além disso construíram-se, à superfície, infra-estruturas de apoio. Os trabalhos em curso, no entanto, não passaram desta fase inicial, parando em seguida devido a problemas de diversa ordem.
Pouco depois do encerramento dos trabalhos e face à deficiente qualidade técnica e científica do projecto em causa (…) alertámos para “as consequências da possível abertura da Gruta da Senhora ao turismo” (P. Cuiça, 1988). Com o passar dos anos e perante o imobilismo dos trabalhos voltámos a chamar a atenção para “a situação intolerável que se verifica com a Gruta da Senhora (cujos trabalhos para a sua abertura ao turismo com verbas da CE estão parados e tiveram consequências negativas quer para a cavidade quer para o exterior)” (P. Cuiça, 1993).
Somente no Verão passado tive oportunidade de constatar in loco a extrema gravidade das acções provocadas no interior da Gruta da Senhora; isto porque o gradeamento que fechava a entrada dessa cavidade se encontrava parcialmente destruído (tal como já tinha ocorrido aquando do fecho da gruta após as descobertas de 1977) permitindo a passagem. Só que agora, ao contrário do que se verificava anteriormente, o uso de corda é desnecessário visto a estrutura metálica aí existente funcionar como escada; daí que, perspectiva-se novo período de incursões antrópicas a essa caverna com consequências invariavelmente nefastas.
O interior da Gruta da Senhora está irreconhecível: uma linha bem marcada separa as zonas de paredes subaérea (de cores claras) das que se encontravam enterradas (de cores escuras), sulcos produzidos por objectos metálicos rasgam as paredes em diversos locais, as concreções estão na sua quase totalidade destruídas. Não sendo admissível que pessoas sem preparação específica efectuem sondagens ou remobilizações do “solo” das grutas, com mudança de posição ou recolha de objectos, por estas provocarem a alteração estratigráfica dos materiais aí existentes (P. Cuiça, 1988, 1993) com que direito é que se retirou o preenchimento sedimentar da Gruta da Senhora a balde? A presença em diversas grutas algarvias de jazidas pré-históricas, nomeadamente no Cerro da Cabeça (ex. Abismos, Ladroeiras), aconselharia um procedimento distinto daquele que foi empregue para retirar o preenchimento sedimentar da Gruta da Senhora.
Perante o estado em que se encontra essa caverna, como remediar o irremediável? Cobrir as paredes com um produto que disfarce as óbvias diferenças de cor devidas às dissemelhantes acções de meteorização sofridas pelas zonas enterradas e subaéreas ou voltar a colocar idêntico volume de argilas de maneira a cobrir as zonas que se encontravam enterradas? Colar as estalactites e estalagmites que se encontram partidas?
Uma coisa sabemos, nada voltará a ser como dantes: a Gruta da Senhora, fruto de uma longa evolução, foi gravemente degradada devido a acções antrópicas de duração comparativamente exígua. As instituições que se organizaram na gestão do espaço físico que é a Gruta da Senhora e na exploração dos respectivos recursos, para o turismo, no seu exclusivo interesse imediato (ainda que para fins filantrópicos), procederam à degradação do património natural, destruindo testemunhos ambientais de grande valor e produzindo danos e perdas irreparáveis.
Mesmo que se considere a Gruta da Senhora como sendo “propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Moncarapacho” (in Grutas do Cerro da Cabeça, 1985) isso não iliba o procedimento desta; pois a sociedade (ou seja, todos os indivíduos incluindo as gerações vindouras) têm o direito de usufruir desse vasto condomínio que é a natureza, garante de uma vivência democrática, bem como de promover a prevenção ou cessação dos factores de degradação do ambiente (artº 9º, 65º, 66º, 81 e 91º da Constituição da República Portuguesa). As grutas serão, pois, do domínio público e não passíveis de privatização; a reforçar este ponto de vista e a demonstrar a importância das mesmas, lembremos que se propôs a classificação de todas as grutas, algares, sumidouros e exsurgências do Algarve, ao abrigo do Decreto-Lei nº 613/76 (M. J. Macedo, 1985).
Gruta da Senhora @P. Cuiça (2008)
[ATENÇÃO: A peça em causa pretendeu alertar apenas e tão somente para a destruição que se verificou na Gruta da Senhora, na sequência de tentativa de abertura ao turismo da mesma. Não pretendemos, de todo, atacar pessoalmente quem quer que seja. Aliás, tal como foi dito no primeiro post deste blogue, apenas nos move a divulgação de artigos publicados há alguns anos porque poderão servir como base de reflexão para aquilo que se passa hoje em dia. Se com isso for possível evitar erros do passado, nem que por uma só vez, este blogue já serviu para algo de positivo… Nesse contexto, resolvemos omitir o nome dos visados, mais precisamente do então Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Moncarapacho e do então Presidente do Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve (CEEAA), ainda para mais quando ambos já faleceram...
Por outro lado, será igualmente importante salientar que o actual Presidente do CEEAA, João Varela, a Direcção do CEEAA e, por maioria de razão, os actuais sócios (entre os quais me incluo), nada têm a ver com as opções tomadas, há anos atrás, aquando da tentativa de abertura da gruta ao turismo.]
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