13/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (IV)

Toponímia
A filologia clássica explica a origem dos topónimos pela evolução da escrita e pelas suas significações actuais. No entanto, muitos dos nomes de sítios são de origem oral e bastante antiga, foram ditos e transmitidos de viva voz muito antes de terem passado à escrita: na melhor das hipóteses foram escritos nas crónicas medievais e, para a maior parte, com a organização dos registos prediais (século XIX) e a cartografia (século XX). Portanto, entre a nomeação do sítio e a passagem do nome à escrita podem ter-se passado três ou cinco milénios (ESPÍRITO SANTO, 2004)! Daí que os nomes dos locais possam ter sofrido diversas transformações correspondentes a tão dilatado intervalo de tempo, mudando inclusivamente de semântica. No entanto, o significado dos nomes dos sítios são geralmente bastante estáveis e duradouros, tal como as sociedades que os utilizam, e de certo modo dificilmente substituíveis porque são referências indispensáveis à vida quotidiana. Atendesse, por exemplo, como o poder pombalino “baptizou” a Praça do Comércio lisboeta e esta ainda continua ser chamada vulgarmente de “Terreiro do Paço”, como a “desconhecida” praça D. Pedro IV, também em Lisboa, é por todos conhecida como Rossio (ibidem). Os nomes eram e são as referências insubstituíveis dos sítios, transmitidos pela memória colectiva de gerações sucessivas, usados não só pelos naturais como pela gente das redondezas e pelos “estranhos” aos lugares.
Os nomes foram atribuídos aos sítios pelos habitantes locais e/ou vizinhos, em virtude das funções sociais ou das razões geográficas que esses sítios evocam. Os topónimos são, portanto, tanto ou mais estáveis do que os sítios que denominam. As mudanças de língua, de religião ou de sistema político, podem acrescentar novos nomes, mas regra geral não interferem na toponímia estabelecida. Há casos em que o nome mudou por via administrativa (um certo Vale de Cães mudou para Vale dos Prazeres ou Porcalhota passou para Amadora), mas trata-se de tendências recentes que só são viáveis pela força da escrita e da burocracia do Estado (ibidem).
A perenidade dos nomes não impede, contudo, alguns arranjos fonéticos, que são inevitáveis e até lógicos com a evolução milenar do linguajar. Esse fenómeno pode ocorrer sob a forma de uma corrupção fonética propulsionada pela proximidade semântica de um outro vocábulo, por exemplo o uso da palavra “algarve” com o mesmo significado de “algar”, por sua vez proveniente do árabe al-ĝār: a gruta. Abstraindo-nos dessas e de outras evoluções que os topónimos podem sofrer, não restam dúvidas de que os nomes dos sítios são de primordial importância para inferir as suas características geográficas “originais”, mesmo quando estas já há muito foram profundamente alteradas ou até destruídas e, por isso, esquecidas. Por estas e por outras razões, quando se procede a uma prospecção de cavidades subterrâneas numa determinada área começa-se frequentemente pelo estudo toponímico da mesma e, para tal, é costume recorrer-se a fontes bibliográficas e cartográficas, tal como aos habitantes locais. Qualquer espeleólogo sabe que os pastores são das melhores fontes de informação e que as tascas são locais preferenciais para obter preciosos dados, mas nessas circunstâncias é fundamental dominar a “gíria” local!
Estácio da Veiga (1886) refere que “sob a denominação de caverna correm confundidos varios termos de equivalente significação, taes como furna, algar, gruta e lapa, que todavia poderiam ser estremados com restricção especial, tendo-se em apurada conta o sentido, mais popular que litterario, com que a gente campesina emprega cada um d’esses vocabulos”. Esse autor salienta, ainda, que “não é tão nomeada a gruta como são a furna e o algar, e contudo os habitantes do campo sabem distinguila, aplicando o termo a certas cavidades de limitadas dimensões, que podem ser utilisadas para abrigo de gados e pastores”.
Segundo Ernest Fleury (1925): “Nas regiões de grutas (…), o povo distingue lapas, cavernas horisontais ou pouco inclinadas e algares ou algarves, verdadeiros abismos ou poços profundos, mais ou menos verticais. Conhece as designações de gruta e de caverna, mas não as emprega na linguagem corrente, conforme diz o Prof. Leite de Vasconcellos, substituindo-as pelos nomes de cova, lapa e até mina, que nada significam ao certo. No Algarve, na Madeira e nos Açores, falam muito de furnas mas com acepções diversas, parece, se bem que Estácio da Veiga tente contrapor furnas e algares.
Esta distinção popular de lapas e algares não deixa de ser exacta mas nem sempre é aplicada e, além disso, é insuficiente. As lapas compreendem os simples abrigos na rocha como também verdadeiras cavernas; os algares parecem ser sobretudo cavidades de acesso difícil. Por outro lado, o povo em geral só conhece as entradas das grutas e não é capaz de reconhecer a sua diversidade morfológica.
Esta confusão linguística no tocante à tipologia das cavidades de pouco importa para o objectivo em causa que se trata, não nos podemos esquecer, de pura e simplesmente descobrirmos as ditas. A estas denominações podemos ainda acrescentar outras (muitas) mais: abismo, algarão, algarinho, algarocho, buraco, fojo, forjoco, fórna, furninha, grota, grotão, grotião, grotilhão, gruna, grutião, grutilhão, lapão, loca, lura, poço, socairo, socavão, solapa, solapão, toca, etc.. Antro, cavidade, covil, cripta, espelunca, entre outros, são termos eruditos que se poderão encontrar na literatura mas dificilmente entre as gentes do campo e, curiosamente, também da cidade.

Foi munidos desta bagagem lexical que encetámos uma intensa busca bibliográfica e cartográfica, tal como partimos à aventura de questionar os transeuntes que encontrámos em “campo” (melhor seria dizer: na cidade!) sobre a existência de cavidades subterrâneas. Foi também neste contexto que descobrimos diversas referências de grande interesse. Algumas revelaram-se, é certo, ambíguas e dificilmente relacionáveis com a existência de cavidades subterrâneas, como Travessa dos Algarves (Sta. Maria de Belém), ou comprovadamente sem nada a ver com a tipologia de cavidades desejada, como a Rua do Poço dos Negros (S. Catarina e S. Paulo). Outras apesar de promissoras revelaram-se impossíveis de comprovar, como Cova da Onça: descobrimos dois desses topónimos no concelho de Lisboa, um na freguesia de Carnide (Azinhaga da Cova da Onça) e mais um na freguesia dos Prazeres.
Outros exemplos similares são a Rua da Lapa e a própria freguesia homónima (Lapa) onde esta se situa, a Quinta das Furnas, o Bairro Social da Quinta das Furnas e a Rua das Furnas (S. Domingos de Benfica), o Páteo das Furnas (Nª Sra. da Ajuda) e Calçada do Poço dos Mouros, anteriormente designada Estrada do Poço dos Mouros (Penha de França). Outras referências ainda, apesar de confirmadas formas endocársicas, por diversas vicissitudes, deixaram de existir (porque foram destruídas) como é o caso da Cova da Moura (Prazeres). Este topónimo surge amplamente em diversa bibliografia, em cartografia e no terreno, sob diversas formas: Alto da Cova da Moura; Rua da Cova da Moura; Travessa da Cova da Moura; Chafariz da Cova da Moura; Vale da Cova da Moura. Esta cavidade localizar-se-ia no Vale da Cova da Moura e terá sido destruída, em 1947, durante a construção da Avenida Infante Santo, responsável igualmente pela demolição do Aqueduto das Necessidades que, à data, conduzia água para os chafarizes de Campo de Ourique, da Estrela, da Praça de Armas e das Terras (SIPA, 2011).
Será de salientar que o topónimo "Cova da Moura", ou similares, surge amiudadas vezes em todo o território nacional associado a cavidades subterrâneas naturais e artificiais: Gruta dos Mouros ou da Ponte da Laje (Oeiras), Fojo dos Mouros (Colaride), Gruta da Cova da Moura (Torres Vedras), Casa da Moura (Cesareda), Casas dos Mouros (Colares), Cova dos Mouros (Alapraia), Algarão do Poço dos Mouros (Salir), etc.
É largamente sabido que tudo aquilo que é de proveniência remota (normalmente mais antigo do que a ocupação “árabe” da Península Ibérica) é atribuído pelo povo aos mouros. Certamente menos conhecido, e como exemplo de uma justaposição de significações encontradas na variação fonética de um vocábulo, temos, associado ao protótipo da lenda portuguesa da Moura Encantada – que é da cultura fenícia ou púnica –, o termo mowrh [mauora ou mâuôra]  – com o significado de “cova, caverna” (ESPÍRITO SANTO, 1989, 2004).


CUIÇA, Pedro - Toponímia in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 24-27.

12/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (III)


O culto das grutas
Santuários rupestres, incontornáveis da geografia do sagrado, as grutas surgem desde tempos imemoriais como redutos naturais associados a cultos pagãos. Fenómeno retomado pelo cristianismo que se apropriou de alguns desses espaços para aí implementar outra forma de culto. Talvez o caso mais conhecido corresponda à Gruta de Massabielle (Pirenéus franceses) que, depois de alegadas aparições marianas atribuídas a Conceição (de "concepção"), passou a ser conhecida como "Gruta de Nossa Senhora de Lourdes". Mas os exemplos são inúmeros e Portugal também é pródigo em santuários cavernícolas: Lapa de Santa Margarida (Setúbal), Gruta de Nossa Senhora da Luz (Rio Maior), Capela de Nossa Senhora da Estrela (Redinha), Gruta de Nossa Senhora do Tojo (Abrantes), Gruta da Capela da Memória (Nazaré) e Gruta da Rocha (Carnaxide), entre outras (CUIÇA, 2011).
A Gruta da Rocha ou Gruta da Senhora da Rocha, como também é conhecida, merece uma menção especial por se localizar num concelho limítrofe do de Lisboa e muito próximo, portanto, de um caso semelhante identificado na área em estudo. Situada na margem direita da ribeira do Jamor, no lugar do Casal da Rocha, esta abre-se em calcários do Cenomaniano superior, à semelhança das cavidades naturais que ocorrem no concelho de Lisboa e, nesse contexto, não se destaca das suas congéneres não fosse possuir uma história algo curiosa que culminou na edificação de uma igreja cujo altar-mor se situa precisamente sobre a mesma e que foi construída para acolher a imagem de Nossa Senhora que aí foi descoberta.
Hoje em dia continua a celebrar-se missa nesse templo, realiza-se uma festividade anual e até existe uma Irmandade da Nossa Senhora da Conceição da Rocha mas poucos conhecem a existência de uma gruta nas suas fundações e da lenda que deu origem a tudo isso
A primeira referência a esta gruta reporta-se à sua (re)descoberta, em 1822, e à estória que se seguiu ao suposto achamento no seu interior de uma "imagem de cerâmica envolta em pobre manto a delir-se de velhice e humidade": a Senhora da Conceição. Os eventos que se sucederam levaram à construção do Santuário de Nossa Senhora da Conceição da Rocha. Na verdade, esta gruta já tinha sido descoberta há muito. Tal como tantas outras, suas congéneres da Península de Lisboa, foi utilizada como necrópole e abrigo, tendo sido encontrados ossos humanos e materiais pré-históricos (líticos e cerâmicos) atribuídos aos períodos Neolítico, Calcolítico e Contemporâneo. Existem também registos (que tivemos oportunidade de confirmar em parte) que dão conta de sete abrigos/cavidades nas imediações da Gruta da Rocha onde também foram recolhidos materiais pré-históricos e históricos (CUIÇA, 2011).
O destaque dado à Gruta da Rocha deve-se ao facto de no sítio do Penedo ter ocorrido um fenómeno similar que está na origem do nome da freguesia da Ajuda, inicialmente baptizada de Nossa Senhora da Ajuda precisamente por esse motivo. Ao que consta, dois pastores de cabras terão encontrado uma imagem de Nossa Senhora numa gruta, tendo sido depois construída uma ermida para recolher essa imagem, a que se chamou inicialmente Nossa Senhora Aparecida. As romagens à ermida começaram desde logo e, porque os devotos diziam receber muitas graças, foi mudada a designação para Nossa Senhora da Ajuda. A afluência atingiu tais proporções que surgiu a necessidade de construir um local de culto de maiores dimensões que viria a ser a primitiva igreja paroquial da Ajuda. O primeiro documento, de que temos conhecimento, e que refere a Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, data de 20 de Março de 1520 e trata-se do testamento do fidalgo João de Meyra, feito antes de partir para a Índia, deixando os seus bens à igreja (CONSIGLIERI et al., 1996). A cavidade onde se terão despoletado estes eventos e da qual desconhecemos o paradeiro é designada neste trabalho como “Gruta da Aparecida”. A sua localização é atribuída, segundo uns autores, ao Largo da Ajuda (JANEIRA & MASCARENHAS, 2008), mas outros referem outros sítios!
Sobre o culto associado a grutas é também de destacar a referência que o insigne arqueólogo Leite de Vasconcelos faz, na sua obra Religiões da Lusitânia (1897), sobre a Freguesia da Lapa, inicialmente denominada de “Nossa Senhora da Lapa". Esse facto, para além da referência a que já fizemos alusão quando abordámos a toponímia, indicia que aí também deveria ter havido uma gruta e, quem sabe, associada também ao culto.

Gruta da Senhora da Rocha (Sítio do Casal da Rocha - Carnaxide) (PC © 2012)
Foto integrada no texto: Santuário de Nossa Senhora da Conceição da Rocha (Sítio do Casal da Rocha - Carnaxide) (PC © 2012)

CUIÇA, Pedro - O Culto das Grutas in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 37-38.

07/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (II)


O trogloditismo

Os abrigos sob rocha e as cavidades subterrâneas, naturais ou semi-naturais, tal como artificiais, nas suas formas elementares, constituem, sem dúvida, a tipologia mais remota, rústica e simples de habitação humana, permanente ou estacional. É comum pensar-se que estes tugúrios foram abandonados nos alvores das civilizações agrícolas e sedentárias, constituindo essencialmente abrigos temporários, ou mesmo ocasionais, geralmente relacionados com determinadas actividades como o pastoreio e a guarda dos campos. Na verdade, continuaram a ser utilizados até hoje na península de Lisboa, como abrigo ocasional ou, inclusivamente, como habitação. As Grutas do Vale de Alcântara e as Furnas de Monsanto são, nesse aspecto, um excelente exemplo ao terem sido habitadas pelo menos até aos anos 60 do século passado. Mas ainda existem grutas que servem de abrigo extemporâneo ou temporário (ex. Gruta do Aqueduto) ou, como no vizinho concelho de Oeiras, de habitação permanente. As cavidades da Quinta da Moura (Oeiras) foram habitadas até ao ano de 2010, altura em que os ocupantes fora “desalojados” devido às notícias televisivas que deram a conhecer esses actuais exemplos de trogloditismo!
Em certos casos e regiões, como na península de Lisboa, os abrigos sobre rocha e as cavernas foram utilizados tal como se encontram na natureza, sem quaisquer modificações ou arranjos, sendo por isso designados de “abrigos naturais” s.l.. O engenho do Homem foi responsável, contudo, apelo afeiçoamento de algumas dessas habitações naturais através da introdução de melhoramentos, mais ou menos sumários, com vista ao aumento ou mais perfeito resguardo do espaço abrigado, merecendo então o nome de “abrigos semi-naturais”. Noutros casos, frequentes no concelho de Lisboa e limítrofes, conhecem-se diversos exemplos de cavidades escavadas pelo Homem, com o objectivo de servirem de habitação sendo, portanto, abrigos artificiais. Estas intervenções, no domínio da designada “arquitectura subterrânea”, aproveitaram as bancadas de rochas mais brandas do Cretácico para escavar espaços habitacionais e/ou para armazenamento.

Cavidade da Quinta da Moura (Oeiras) em 2002 (em cima) e em 2012 (em baixo) (PC © 2002, 2012)

As tão faladas furnas, cavernas ou grutas da Rua Maria Pia, de Alcântara ou do “Sertão”, que foram alvo de numerosas notícias no Diário de Lisboa e no Diário de Notícias, em Janeiro de 1938, constituem um bom exemplo de trogloditismo. Ao contrário das notícias tão sensacionalistas quanto incorrectas que foram veiculadas, comparando estas com Lascaux e adivinhando um espólio arqueológico que nunca surgiu, estas cavidades são artificiais: um claro exemplo de arquitectura subterrânea com fins habitacionais e/ou de arrumação. A sua localização é, por vezes, confundida com outras ocorrências situadas igualmente na margem esquerda do vale de Alcântara.


Rua do Loureiro (em cima) e afloramento onde se situam as Grutas do Sertão (PC © 2012)

Grutas do Sertão ( (DR © adapt. DN nº 25854, de 28/Jan. 1938)

As referências sobre a utilização das grutas de Alcântara como habitação são numerosas e também assinalam cavidades na margem direita do vale. Há mesmo quem afirme que aí viviam, ainda nos anos 60 do século passado, “imensas pessoas” (blogue “Rua dos Dias que Voam”, 21/Nov. 2004). Venância Ribeiro, uma mulher com mais de 70 anos que ainda em 2004 fazia fretes num mercado da cidade, contou que nos primeiros tempos chovia na furna de Alcântara onde viveu até pelo menos aos 20 anos de idade: "Acordávamos todos encharcados" (ibidem).
As Furnas de Monsanto também foram muito utilizadas como habitação. Segundo João Martins (comum. pessoal) a primeira ocupação do Bairro da Liberdade “está ligada à chegada de migrantes para a recente industrialização do vale de Alcântara implicando a fixação de população nesta zona de fronteira da cidade de Lisboa. É um conjunto populacional que tem as suas origens na primeira década do século XX, com uma ocupação precária de buracos na estrutura da inclinação da Serra do Monsanto, as chamadas “grutas””. Em 1947, ainda viviam pessoas nas furnas de Monsanto (Vieira, 2000).
A gruta de maiores dimensões da Pedreira da Serafina (Furna da Serafina V), onde chegaram a viver várias famílias, foi completamente atulhada e situava-se no extremo sul da pedreira (Rui Marques, comum. pessoal). As outras cavidades, situadas na base da escarpa dessa pedreira, e ainda visíveis, foram parcialmente obstruídas com terra e blocos e contêm carros abandonados no interior (ibidem).


Monsanto I (em cima) (PC © 2012) e trogloditismo (1947), provavelmente nessa cavidade (em baixo) (in VIEIRA, 2000)

A utilização das grutas não se limitava a habitação permanente, também eram usadas de forma esporádica nomeadamente por parte de criminosos e até como local de reuniões clandestinas no período do Antigo Regime. Por esses e por outros motivos é que grande parte das cavidades foram encerradas…




CUIÇA, Pedro - O Trogloditismo in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 33-36.

06/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (I)


No tocante ao apelo “a todos aqueles que tenham informações acerca de grutas no concelho de Lisboa”, no âmbito de um trabalho universitário em que estive envolvido – Ameaças à Geodiversidade – Cavidades subterrâneas do Concelho de Lisboa – aqui fica o agradecimento aos que de alguma forma responderam ao dito. Devido à extensão do trabalho publico somente a introdução e as conclusões. Nos próximos posts conto publicar também os conteúdos referentes ao trogloditismo e ao “culto das grutas”, tal como as referências toponímicas.


Introdução


21.978 a.C.
Saíram e dirigiram-se a outra caverna.
Tens muitos sítios, disse o rapaz.
Há muitos caminhos debaixo da terra, respondeu o velho, mais que tu possas pensar.
(…)
1936
Era um dos temas em que [Aquilino Ribeiro] meditava quando passeava pelas terras da infância, de Sernancelhe à Lapa: que a rudeza pré-histórica não desaparecera, mesmo nas maiores cidades como Lisboa; apenas ganhara outra espécie de densidade. O mundo tornara-se hostil à presença do maravilhoso. Longe deveriam ir os tempos em que andavam faunos pelos bosques.
(…)
1742 (Julho)
Observaram o local com atenção em busca dos sinais indicados pela Beata de Óbidos. Contornaram com lentidão o sopé da montanha [Penha de França] retirando os pedregulhos maiores do caminho para avançar com as carretas e encontraram a entrada da gruta. O franciscano olhou em volta e não viu vestígios de ocupação; nem ossos, cinzas ou pegadas: o local estava abandonado há muitos anos. Inclinou-se para espreitar e cheirou a humidade do interior da terra – musgo e poeira.
(…) ‘Os Mouros moraram aqui’, disse.

David Soares (2008) – Lisboa Triunfante

A minha Lisboa desenhava-se aos poucos como um articulado de pedras engendrado por gente e cimentado por palavras, sobreposição à primeira vista anárquica de expressões, gostos, vontades, sonhos e ambições, moldura irremediável da vivência de quem vem depois e, claro, também, do olhar curioso de quem teima perceber a trama complexa da evolução da cidade.

José Sarmento de Matos (2008) – A Invenção de Lisboa – Livro I: As Chegadas


Um trabalho sobre grutas no concelho de Lisboa pode parecer, à primeira vista, algo de absurdo tendo em conta que num contexto citadino, onde grande parte do território se encontra densamente urbanizado, seria difícil encontrar tais cavidades naturais mesmo que estas já tenham existindo no passado. Esse intento não deixará igualmente de causar alguma estranheza tendo em conta que Lisboa se trata de uma cidade várias vezes milenar, palco de diversas civilizações, alvo de cataclismos tão dramáticos quanto o terramoto de 1755 e, não menos importante, na qual não se ouve hoje falar de tais fenómenos!…
O meu interesse por esta “desconhecida” temática surgiu, em 1985, com base na leitura de um artigo da autoria de Octávio da Veiga-Ferreira – Lisboa há milhões de anos: os homens pré-históricos estabeleceram-se com certeza nas antigas grutas do Vale de Alcântara!… Desde essa altura, sempre que passo nesse importante vale lisboeta lembro-me invariavelmente dos nossos ancestrais pré-históricos e das grutas aí existentes. Memórias que despertam a magia de outros tempos, nos quais esse vale seria certamente verdejante e no fundo do qual até uma ribeira corria no seu natural percurso. Um marcado contraste com a realidade actual em que o antigo curso de água corre encanado sob uma larga avenida e o vale se encontra pejado de prédios, estradas, viadutos, um caminho-de-ferro e até uma ETAR.
Enquanto o Vale de Alcântara, ainda que profundamente descaracterizado, continuar a despertar memórias de tempos ancestrais, enquanto persistir em ser um hino à lembrança de outras épocas, não permitirá o esquecimento e, só por isso, funcionará, vezes sem conta, como uma “máquina do tempo” proporcionando um eterno retorno às saudades do futuro.

Vale de Alcântara (PC ã2012)


Conclusões
Há grutas, melhor seria dizer ainda há grutas, no concelho de Lisboa: os trabalhos de prospecção permitiram localizar duas dezenas de cavidades. No entanto, a maior parte das ocorrências confirmadas no terreno encontram-se bastante degradadas, total ou parcialmente entulhadas e/ou funcionando como depósitos de resíduos de natureza diversa. Por isso, o acesso às cavidades revela-se impossível, bastante difícil ou até perigoso, não em termos da dificuldade técnica da progressão mas sim de “saúde pública”, o que impede ou dificulta a sua caracterização, nomeadamente no tocante ao seu desenvolvimento ou outros elementos de interesse. O trabalho levado a cabo também revelou a confirmação de diversas grutas destruídas/desaparecidas devido à urbanização das áreas onde se encontravam.
A reabilitação da Gruta do Rio Seco I, no âmbito da sua classificação como geomonumento, revela a importância dada à preservação da geodiversidade e augura o surgimento de uma nova mentalidade no que concerne à tomada de consciência acerca dos valores intrínsecos associados à geologia em geral e às cavidades subterrâneas em particular. A adequada dinamização desse geomonumento constituirá certamente um exemplo a seguir e funcionará como estímulo à recuperação de outras cavidades. A preservação da Furna do Rasto deve ser tida em conta, dado que se trata da única cavidade existente no concelho relativamente bem conservada, para além de possuir um desenvolvimento considerável e comportar diversos elementos de valor inegável.
O trogloditismo e o “culto das grutas” surgem como valores acrescentados no âmbito das mais recentes definições de geodiversidade, enfrentando como manifesta ameaça o esquecimento.

05/11/2012

OUTRA VEZ A LUA?


Acabo de chegar da minha terceira viagem às Canárias. Da primeira vez tratou-se de uma visita, se assim se poderá dizer, com uma importante componente espeleológica: tive oportunidade de conhecer alguns túneis vulcânicos em Tenerife e El Hierro. Esta foi, sem dúvida, uma visita tão inesquecível quanto marcante sob vários níveis… E certamente não terá sido por conhecer os “perritos calientes con papas locas”!
Da segunda vez o “assunto” que me conduziu a esse arquipélago foi o pedestrianismo: participei numas Jornadas de Senderismo em que, numa “escapadela”, acabei por subir até ao cume do Teide, juntamente com dois companheiros espanhóis, numa noite memorável (e, na descida, visitei a Cueva del Hielo)… Escusado será dizer que após essa “directa” cheguei a horas de participar nos trabalhos das Jornadas aparentemente como se nada se tivesse passado :) Curiosamente, nessa ocasião, também regressei a El Hierro onde fiz um percurso impressionante pelo desnível vencido e pela beleza da paisagem. Foi no final dessa segunda “visita” que recebi a notícia marcante da morte de um companheiro nos Himalaias…
Desta feita, a terceira, o motivo pelo qual estive nas Canárias voltou a ser o pedestrianismo. Invariavelmente fiquei “preso” à visão do Teide e recorrentemente, quer nas deslocações em veículos motorizados quer nos passeios a pé, percorri a paisagem com o olhar atraído pelos inúmeros “buracos” que aí se encontram…
O motivo pelo qual escrevo este post centra-se no facto de, após um certo “desconforto” ou “inadaptação” face à desordenada ocupação urbanística de Tenerife e de um modo geral à “modernidade”, pelo menos era essa a explicação que encontrava para o “sentir” das outras vezes (!), me ter “reconciliado” ou “focado” no espaço e no tempo! Na verdade, descobri uma nova forma de vivenciar o espaço, assente no presente, mas sentindo ou procurando sentir o passado, com base nos numerosos testemunhos… guanches e, claro, nos quais as cuevas ocupam um lugar preponderante.
Já durante a primeira visita tinha comprado um livro acerca das pinturas rupestres em cavidades artificiais, mas foi somente durante esta última que descobri e, sobretudo, senti a intensa e multifacetada presença do espírito guanche. Desde logo na rica toponímia local, mas não só… Foi desta feita que descobri a Tara – a grande mãe ou deusa da Terra –, o panteísmo ou animismo desse povo que expressava um culto ao ar livre fortemente ligado a grutas, montanhas, fontes, “pedras espirituais” ou “rochas animadas”. Tais concepções não resultaram do facto de estar uma lua-cheia fascinante ou de se comemorar o Samhain, a festa do ano velho e o começo do novo, ou até de se celebrar o começo do Inverno, numa fronteira entre mundos, mas certamente terá ajudado...
Esta terceira viagem fechou um ciclo mas abriu, sem dúvida, um outro. Esta que foi uma viagem essencialmente no self – nas profundezas do ser – terá, assim espero, tradução sob a forma de futuras aventuras no terreno em busca desse espírito da Terra só agora aflorado… Um caminho que levará, mais uma vez, ao alto de montanhas e às profundezas de grutas.


Vista do Teide, ao final do dia, desde Orotava (PC ã 3/11/2012). 



"A mi entender, esta abundante presencia de símbolos mágicos con un gran significado en determinados lugares (imaginización) o de construcciones como los templos redondos, los círculos de piedra y los altares para ofrendas son elementos que poseen una gran relevancia. Imaginizar significa percebir la magia y las irradiaciones de un lugar y añadir una imagen exterior, visible para todos, a la imagen generada en nuestro interior como consecuencia de dicha percepción.
(...)
Nuestros antepasados estaban en perfecta comunicación con cada una de las manifestaciones naturales y con cada elemento, tanto con el manantial como con el viento, mediante las incisiones, dibujos y pigmentos que hacían en la piedra. Se sentían unidos tanto a lo animado como a lo inanimado, puesto que para ellos todo lo que existía tenía vida, las piedras, la tierra, el cielo y el mar.
La religión de la cultura atlántica occidental - y también esto es un rasgo típico de los aborígenes canarios - se practicaba al aire libre. Los altares se dejaban vacíos pues eran reservados como asientos para los dioses, igual que los roques, y si se llegaban a erigir ídolos (como los "efequenes" de Fuerteventura o la "figura femenina" de Tara, en Gran Canaria), tales actividades se hacían al aire libre.
(...)
La madre ancestral de Tara, hallada cerca del municipio de Telde, Gran Canaria, es considerada, por lo general, una escultura de la máxima elegancia y gusto refinado desde una perspectiva estética. Dicha estatua se exhibe actualmente en el Museo Canario de Las Palmas de Gran Canaria. Esta escultura ha ido adquiriendo cada vez más importancia ya que la palavra "tara" en la lengua de los aborígenes canarios significa "símbolos para recordar" o "escrita". İ Todos los petroglifos son "taras"! "Tara" es pues una palavra preindoeuropea de extraordinaria transcendencia."

Harald Braem in Tras las huellas de los aborígenes - Guia arqueológica de Canarias (Zech, 2010, p. 33-35)