13/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (IV)

Toponímia
A filologia clássica explica a origem dos topónimos pela evolução da escrita e pelas suas significações actuais. No entanto, muitos dos nomes de sítios são de origem oral e bastante antiga, foram ditos e transmitidos de viva voz muito antes de terem passado à escrita: na melhor das hipóteses foram escritos nas crónicas medievais e, para a maior parte, com a organização dos registos prediais (século XIX) e a cartografia (século XX). Portanto, entre a nomeação do sítio e a passagem do nome à escrita podem ter-se passado três ou cinco milénios (ESPÍRITO SANTO, 2004)! Daí que os nomes dos locais possam ter sofrido diversas transformações correspondentes a tão dilatado intervalo de tempo, mudando inclusivamente de semântica. No entanto, o significado dos nomes dos sítios são geralmente bastante estáveis e duradouros, tal como as sociedades que os utilizam, e de certo modo dificilmente substituíveis porque são referências indispensáveis à vida quotidiana. Atendesse, por exemplo, como o poder pombalino “baptizou” a Praça do Comércio lisboeta e esta ainda continua ser chamada vulgarmente de “Terreiro do Paço”, como a “desconhecida” praça D. Pedro IV, também em Lisboa, é por todos conhecida como Rossio (ibidem). Os nomes eram e são as referências insubstituíveis dos sítios, transmitidos pela memória colectiva de gerações sucessivas, usados não só pelos naturais como pela gente das redondezas e pelos “estranhos” aos lugares.
Os nomes foram atribuídos aos sítios pelos habitantes locais e/ou vizinhos, em virtude das funções sociais ou das razões geográficas que esses sítios evocam. Os topónimos são, portanto, tanto ou mais estáveis do que os sítios que denominam. As mudanças de língua, de religião ou de sistema político, podem acrescentar novos nomes, mas regra geral não interferem na toponímia estabelecida. Há casos em que o nome mudou por via administrativa (um certo Vale de Cães mudou para Vale dos Prazeres ou Porcalhota passou para Amadora), mas trata-se de tendências recentes que só são viáveis pela força da escrita e da burocracia do Estado (ibidem).
A perenidade dos nomes não impede, contudo, alguns arranjos fonéticos, que são inevitáveis e até lógicos com a evolução milenar do linguajar. Esse fenómeno pode ocorrer sob a forma de uma corrupção fonética propulsionada pela proximidade semântica de um outro vocábulo, por exemplo o uso da palavra “algarve” com o mesmo significado de “algar”, por sua vez proveniente do árabe al-ĝār: a gruta. Abstraindo-nos dessas e de outras evoluções que os topónimos podem sofrer, não restam dúvidas de que os nomes dos sítios são de primordial importância para inferir as suas características geográficas “originais”, mesmo quando estas já há muito foram profundamente alteradas ou até destruídas e, por isso, esquecidas. Por estas e por outras razões, quando se procede a uma prospecção de cavidades subterrâneas numa determinada área começa-se frequentemente pelo estudo toponímico da mesma e, para tal, é costume recorrer-se a fontes bibliográficas e cartográficas, tal como aos habitantes locais. Qualquer espeleólogo sabe que os pastores são das melhores fontes de informação e que as tascas são locais preferenciais para obter preciosos dados, mas nessas circunstâncias é fundamental dominar a “gíria” local!
Estácio da Veiga (1886) refere que “sob a denominação de caverna correm confundidos varios termos de equivalente significação, taes como furna, algar, gruta e lapa, que todavia poderiam ser estremados com restricção especial, tendo-se em apurada conta o sentido, mais popular que litterario, com que a gente campesina emprega cada um d’esses vocabulos”. Esse autor salienta, ainda, que “não é tão nomeada a gruta como são a furna e o algar, e contudo os habitantes do campo sabem distinguila, aplicando o termo a certas cavidades de limitadas dimensões, que podem ser utilisadas para abrigo de gados e pastores”.
Segundo Ernest Fleury (1925): “Nas regiões de grutas (…), o povo distingue lapas, cavernas horisontais ou pouco inclinadas e algares ou algarves, verdadeiros abismos ou poços profundos, mais ou menos verticais. Conhece as designações de gruta e de caverna, mas não as emprega na linguagem corrente, conforme diz o Prof. Leite de Vasconcellos, substituindo-as pelos nomes de cova, lapa e até mina, que nada significam ao certo. No Algarve, na Madeira e nos Açores, falam muito de furnas mas com acepções diversas, parece, se bem que Estácio da Veiga tente contrapor furnas e algares.
Esta distinção popular de lapas e algares não deixa de ser exacta mas nem sempre é aplicada e, além disso, é insuficiente. As lapas compreendem os simples abrigos na rocha como também verdadeiras cavernas; os algares parecem ser sobretudo cavidades de acesso difícil. Por outro lado, o povo em geral só conhece as entradas das grutas e não é capaz de reconhecer a sua diversidade morfológica.
Esta confusão linguística no tocante à tipologia das cavidades de pouco importa para o objectivo em causa que se trata, não nos podemos esquecer, de pura e simplesmente descobrirmos as ditas. A estas denominações podemos ainda acrescentar outras (muitas) mais: abismo, algarão, algarinho, algarocho, buraco, fojo, forjoco, fórna, furninha, grota, grotão, grotião, grotilhão, gruna, grutião, grutilhão, lapão, loca, lura, poço, socairo, socavão, solapa, solapão, toca, etc.. Antro, cavidade, covil, cripta, espelunca, entre outros, são termos eruditos que se poderão encontrar na literatura mas dificilmente entre as gentes do campo e, curiosamente, também da cidade.

Foi munidos desta bagagem lexical que encetámos uma intensa busca bibliográfica e cartográfica, tal como partimos à aventura de questionar os transeuntes que encontrámos em “campo” (melhor seria dizer: na cidade!) sobre a existência de cavidades subterrâneas. Foi também neste contexto que descobrimos diversas referências de grande interesse. Algumas revelaram-se, é certo, ambíguas e dificilmente relacionáveis com a existência de cavidades subterrâneas, como Travessa dos Algarves (Sta. Maria de Belém), ou comprovadamente sem nada a ver com a tipologia de cavidades desejada, como a Rua do Poço dos Negros (S. Catarina e S. Paulo). Outras apesar de promissoras revelaram-se impossíveis de comprovar, como Cova da Onça: descobrimos dois desses topónimos no concelho de Lisboa, um na freguesia de Carnide (Azinhaga da Cova da Onça) e mais um na freguesia dos Prazeres.
Outros exemplos similares são a Rua da Lapa e a própria freguesia homónima (Lapa) onde esta se situa, a Quinta das Furnas, o Bairro Social da Quinta das Furnas e a Rua das Furnas (S. Domingos de Benfica), o Páteo das Furnas (Nª Sra. da Ajuda) e Calçada do Poço dos Mouros, anteriormente designada Estrada do Poço dos Mouros (Penha de França). Outras referências ainda, apesar de confirmadas formas endocársicas, por diversas vicissitudes, deixaram de existir (porque foram destruídas) como é o caso da Cova da Moura (Prazeres). Este topónimo surge amplamente em diversa bibliografia, em cartografia e no terreno, sob diversas formas: Alto da Cova da Moura; Rua da Cova da Moura; Travessa da Cova da Moura; Chafariz da Cova da Moura; Vale da Cova da Moura. Esta cavidade localizar-se-ia no Vale da Cova da Moura e terá sido destruída, em 1947, durante a construção da Avenida Infante Santo, responsável igualmente pela demolição do Aqueduto das Necessidades que, à data, conduzia água para os chafarizes de Campo de Ourique, da Estrela, da Praça de Armas e das Terras (SIPA, 2011).
Será de salientar que o topónimo "Cova da Moura", ou similares, surge amiudadas vezes em todo o território nacional associado a cavidades subterrâneas naturais e artificiais: Gruta dos Mouros ou da Ponte da Laje (Oeiras), Fojo dos Mouros (Colaride), Gruta da Cova da Moura (Torres Vedras), Casa da Moura (Cesareda), Casas dos Mouros (Colares), Cova dos Mouros (Alapraia), Algarão do Poço dos Mouros (Salir), etc.
É largamente sabido que tudo aquilo que é de proveniência remota (normalmente mais antigo do que a ocupação “árabe” da Península Ibérica) é atribuído pelo povo aos mouros. Certamente menos conhecido, e como exemplo de uma justaposição de significações encontradas na variação fonética de um vocábulo, temos, associado ao protótipo da lenda portuguesa da Moura Encantada – que é da cultura fenícia ou púnica –, o termo mowrh [mauora ou mâuôra]  – com o significado de “cova, caverna” (ESPÍRITO SANTO, 1989, 2004).


CUIÇA, Pedro - Toponímia in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 24-27.

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