A filologia clássica explica a origem dos
topónimos pela evolução da escrita e pelas suas significações actuais. No
entanto, muitos dos nomes de sítios são de origem oral e bastante antiga, foram
ditos e transmitidos de viva voz muito antes de terem passado à escrita: na
melhor das hipóteses foram escritos nas crónicas medievais e, para a maior
parte, com a organização dos registos prediais (século XIX) e a cartografia
(século XX). Portanto, entre a nomeação do sítio e a passagem do nome à escrita
podem ter-se passado três ou cinco milénios (ESPÍRITO SANTO, 2004)! Daí que os
nomes dos locais possam ter sofrido diversas transformações correspondentes a
tão dilatado intervalo de tempo, mudando inclusivamente de semântica. No entanto,
o significado dos nomes dos sítios são geralmente bastante estáveis e
duradouros, tal como as sociedades que os utilizam, e de certo modo
dificilmente substituíveis porque são referências indispensáveis à vida
quotidiana. Atendesse, por exemplo, como o poder pombalino “baptizou” a Praça
do Comércio lisboeta e esta ainda continua ser chamada vulgarmente de “Terreiro
do Paço”, como a “desconhecida” praça D. Pedro IV, também em Lisboa, é por
todos conhecida como Rossio (ibidem). Os nomes eram e são as referências
insubstituíveis dos sítios, transmitidos pela memória colectiva de gerações
sucessivas, usados não só pelos naturais como pela gente das redondezas e pelos
“estranhos” aos lugares.
Os nomes foram atribuídos aos sítios pelos
habitantes locais e/ou vizinhos, em virtude das funções sociais ou das razões
geográficas que esses sítios evocam. Os topónimos são, portanto, tanto ou mais
estáveis do que os sítios que denominam. As mudanças de língua, de religião ou
de sistema político, podem acrescentar novos nomes, mas regra geral não
interferem na toponímia estabelecida. Há casos em que o nome mudou por via
administrativa (um certo Vale de Cães mudou para Vale dos Prazeres ou
Porcalhota passou para Amadora), mas trata-se de tendências recentes que só são
viáveis pela força da escrita e da burocracia do Estado (ibidem).
A perenidade dos nomes não impede, contudo, alguns arranjos fonéticos,
que são inevitáveis e até lógicos com a evolução milenar do linguajar. Esse
fenómeno pode ocorrer sob a forma de uma corrupção fonética propulsionada pela
proximidade semântica de um outro vocábulo, por exemplo o uso da palavra “algarve”
com o mesmo significado de “algar”, por sua vez proveniente do árabe al-ĝār: a
gruta. Abstraindo-nos dessas e de outras evoluções que os topónimos podem
sofrer, não restam dúvidas de que os nomes dos sítios são de primordial
importância para inferir as suas características geográficas “originais”, mesmo
quando estas já há muito foram profundamente alteradas ou até destruídas e, por
isso, esquecidas. Por estas e por outras razões, quando se procede a uma
prospecção de cavidades subterrâneas numa determinada área começa-se frequentemente
pelo estudo toponímico da mesma e, para tal, é costume recorrer-se a fontes
bibliográficas e cartográficas, tal como aos habitantes locais. Qualquer
espeleólogo sabe que os pastores são das melhores fontes de informação e que as
tascas são locais preferenciais para obter preciosos dados, mas nessas circunstâncias
é fundamental dominar a “gíria” local!
Estácio da Veiga (1886) refere que “sob a denominação de caverna
correm confundidos varios termos de equivalente significação, taes como furna,
algar, gruta e lapa, que todavia poderiam ser estremados
com restricção especial, tendo-se em apurada conta o sentido, mais popular que
litterario, com que a gente campesina emprega cada um d’esses vocabulos”.
Esse autor salienta, ainda, que “não é tão nomeada a gruta como são a
furna e o algar, e contudo os habitantes do campo sabem
distinguila, aplicando o termo a certas cavidades de limitadas dimensões, que
podem ser utilisadas para abrigo de gados e pastores”.
Segundo Ernest Fleury (1925): “Nas regiões de grutas (…), o povo
distingue lapas, cavernas horisontais ou pouco inclinadas e algares
ou algarves, verdadeiros abismos ou poços profundos, mais ou menos
verticais. Conhece as designações de gruta e de caverna, mas não
as emprega na linguagem corrente, conforme diz o Prof. Leite de Vasconcellos,
substituindo-as pelos nomes de cova, lapa e até mina, que
nada significam ao certo. No Algarve, na Madeira e nos Açores, falam muito de furnas
mas com acepções diversas, parece, se bem que Estácio da Veiga tente contrapor furnas
e algares.
Esta distinção popular de lapas e algares não deixa de ser exacta mas
nem sempre é aplicada e, além disso, é insuficiente. As lapas compreendem os
simples abrigos na rocha como também verdadeiras cavernas; os algares parecem
ser sobretudo cavidades de acesso difícil. Por outro lado, o povo em geral só
conhece as entradas das grutas e não é capaz de reconhecer a sua diversidade
morfológica.”
Esta confusão linguística no tocante à tipologia das cavidades de
pouco importa para o objectivo em causa que se trata, não nos podemos esquecer,
de pura e simplesmente descobrirmos as ditas. A estas denominações podemos
ainda acrescentar outras (muitas) mais: abismo, algarão, algarinho,
algarocho, buraco, fojo, forjoco, fórna, furninha,
grota, grotão, grotião, grotilhão, gruna, grutião,
grutilhão, lapão, loca, lura, poço, socairo,
socavão, solapa, solapão, toca, etc.. Antro,
cavidade, covil, cripta, espelunca, entre outros, são
termos eruditos que se poderão encontrar na literatura mas dificilmente entre
as gentes do campo e, curiosamente, também da cidade.
Foi munidos desta
bagagem lexical que encetámos uma intensa busca bibliográfica e cartográfica,
tal como partimos à aventura de questionar os transeuntes que encontrámos em
“campo” (melhor seria dizer: na cidade!) sobre a existência de cavidades
subterrâneas. Foi também neste contexto que descobrimos diversas referências de
grande interesse. Algumas revelaram-se, é certo, ambíguas e dificilmente
relacionáveis com a existência de cavidades subterrâneas, como Travessa
dos Algarves (Sta. Maria de Belém), ou comprovadamente sem
nada a ver com a tipologia de cavidades desejada, como a Rua do Poço dos
Negros (S. Catarina e S. Paulo). Outras apesar de promissoras revelaram-se
impossíveis de comprovar, como Cova da Onça: descobrimos dois desses
topónimos no concelho de Lisboa, um na freguesia de Carnide (Azinhaga da
Cova da Onça) e mais um na freguesia dos Prazeres.
Outros exemplos similares são a Rua da Lapa e a própria
freguesia homónima (Lapa) onde esta se situa, a Quinta das Furnas,
o Bairro Social da Quinta das Furnas e a Rua das Furnas (S.
Domingos de Benfica), o Páteo das Furnas (Nª Sra. da Ajuda) e Calçada
do Poço dos Mouros, anteriormente designada Estrada do Poço dos Mouros
(Penha de França). Outras referências ainda, apesar de confirmadas formas
endocársicas, por diversas vicissitudes, deixaram de existir (porque foram
destruídas) como é o caso da Cova da Moura (Prazeres). Este topónimo
surge amplamente em diversa bibliografia, em cartografia e no terreno, sob
diversas formas: Alto da Cova da Moura; Rua da Cova da Moura; Travessa
da Cova da Moura; Chafariz da Cova da Moura; Vale da Cova da
Moura. Esta cavidade localizar-se-ia no Vale da Cova da Moura e terá sido
destruída, em 1947, durante a construção da Avenida Infante Santo, responsável
igualmente pela demolição do Aqueduto das Necessidades que, à data, conduzia água para os chafarizes de Campo de Ourique, da Estrela, da Praça de Armas e das Terras (SIPA, 2011).
É largamente sabido que tudo aquilo que é de proveniência remota (normalmente mais antigo do que a ocupação “árabe” da Península Ibérica) é atribuído pelo povo aos mouros. Certamente menos conhecido, e como exemplo de uma justaposição de significações encontradas na variação fonética de um vocábulo, temos, associado ao protótipo da lenda portuguesa da Moura Encantada – que é da cultura fenícia ou púnica –, o termo mowrh [mauora ou mâuôra] – com o significado de “cova, caverna” (ESPÍRITO SANTO, 1989, 2004).
CUIÇA, Pedro - Toponímia in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 24-27.
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