O património está a saque
[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 181, 15 de Maio de 1998]
O Núcleo de Espeleologia da Costa Azul descobriu que o património arqueológico existente na Lapa do Fumo está a ser devassado. A Câmara Municipal de Sesimbra e a Guarda Nacional Republicana já tomaram conta da ocorrência. Espera-se uma intervenção rápida para pôr fim ao sucedido.
Lapa do Fumo (Arrábida) © Francisco Rasteiro (1998)
O Núcleo de Espeleologia da Costa Azul (NECA) alertou a Câmara Municipal de Sesimbra (CMS), no final de Abril, para as estranhas escavações em curso na Lapa do Fumo. Os espeleólogos encontraram, a par de detritos actuais (roupa, velas, sacos, garrafas de plástico, etc.), materiais cerâmicos, líticos e ósseos, dispersos à superfície. Destacavam-se dois baldes de plástico cheios de fragmentos de cerâmicas, espólio amontoado e terras revolvidas.
A edilidade sesimbrense despoletou rapidamente o processo de averiguação da situação e protecção da cavidade. O arqueólogo da CMS, Luís Ferreira, deslocou-se à Lapa do Fumo, acompanhado da GNR, a fim de ser tomada conta da ocorrência. Paralelamente, os serviços técnicos da CMS estão a decidir qual a forma de fecharem a Lapa do Fumo, porque as soluções anteriores revelaram-se infrutíferas perante os actos de vandalismo. Segundo Luis Ferreira, a última autorização para efectuar trabalhos na Lapa do Fumo remonta a 1988. Quem cavou o solo da gruta procedeu à margem da lei.
Caçadores de tesouros
A Lapa do Fumo situa-se na vertente sul da Serra dos Pinheirinhos (concelho de Sesimbra). Corresponde a uma galeria fóssil, com cerca de 70 metros de comprimento, orientada segundo SE-NW. A largura e altura máximas são de 12 e 6 metros respectivamente. Possui abundantes estalactites e estalagmites, quase na sua totalidade destruídas. As colunas são das poucas formações que conseguiram resistir à destruição. Os grupos de colunatas, dispostos ao longo do eixo longitudinal da cavidade, dividem a galeria em dois corredores onde, apenas no final, é necessário rastejar. De resto, a progressão é fácil e acessível a qualquer individuo, mesmo sem equipamento especializado. A Forum Ambiente visitou o local, na companhia de Francisco Rasteiro (do NECA), e constatou a devassa do espólio arqueológico, a destruição quase total das concreções e o acesso livre a um arqueo-sítio de valor inquestionável. É que as duas portas gradeadas, os cadeados e as paredes da casa-mata não resistiram à fúria daqueles que, à força, quiseram visitar a Lapa do Fumo.
Como refere Marc Jasinski (no livro La Speleologie, 1978): “penetrar numa habitação do Paleolítico, sem permissão de visita, simplesmente para satisfazer alguma mania de coleccionista ou de antiquário, ainda que seja 30 mil anos depois da partida dos seu proprietários (…) continua sendo um delito”. Mais, destruir os fradeamentos e as paredes que impediam o acesso à Lapa do Fumo e/ou saquear o espólio ai existente será um delito grave, um crime agravado, mais não fosse porque a cavidade é um Imóvel de Interesse Público (Decreto-Lei nº 28/82, de 26 de Fevereiro).
Para Luís Ferreira, o “tráfico de material arqueológico, apesar de não estar fundamentada a sua existência, será uma das possíveis explicações para as escavações” em curso na Lapa do Fumo. Segundo esta fonte, os indivíduos envolvidos neste atentado ao património concelhio estariam documentados, pois a área cavada corresponde àquela onde foram descobertas moedas árabes. Os incógnitos, curiosos, coleccionadores ou antiquários serão autênticos “caçadores de tesouros”.
“Estilo Lapa do Fumo”
Hermanfrid Schunbart, Bosh-Gimpera, J. Pedro Garcia Roiz ou Juan de Mata Carriazo, entre outros, colocam em destaque a cerâmica da Lapa do Fumo quando abordam a fase do Bronze final ibérico. Trata-se da “cerâmica com ornatos brunidos”, que alguns denominam “estilo Lapa do Fumo”.
A “Cerâmica com ornatos brunidos” da Lapa do Fumo destaca-se por diverso motivos. Foi a primeira do género a ser divulgada no nosso país (aquando da sua descoberta, em 1956, somente eram conhecidos escassos fragmentos desse tipo cerâmico). É a mais variada e bela, de entre as restantes estações portuguesas e espanholas onde ocorre. Proporcionou ao seu descobridor, Eduardo da Cunha Serrão, a primeira cronologia coerente da “cerâmica com ornatos brunidos” (Idade do Ferro). E, actualmente, esta cerâmica sesimbrense é considerada como sendo do final da Idade do Bronze, transição para a Idade do Ferro.
H. N. Savoy, na obra Espanha e Portugal (1968), assinala e reproduz (figura 85, página 243) um exemplar da “cerâmica com ornatos brunidos” da Lapa do Fumo. O. da Veiga Ferreira e M. Leitão, em Portugal Pré-Histórico (1983), não referem este notável tipo de cerâmica, porque a sua obra exclui a Idade do Bronze. No entanto, reproduzem duas gravuras de vasos neolíticos da Lapa do Fumo (na página 152).
A Lapa do Fumo revelou níveis do Neolítico antigo evolucionado, do Neolítico recente, do Calcolítico, da Idade do Bronze, da Idade do Ferro e das épocas romana e árabe. O espólio arqueológico é muito variado: tumulações; objectos de carácter religioso (placas de xisto gravadas, ídolos-falange e “coelhinhos” de osso; raspadores e micrólitos geométricos de sílex; punhais, cabos cilíndricos, cabeças de alfinete, furadores, espátulas e adornos de osso; vasos, taças, tigelas, pratos e copos de cerâmica; contas bicónicas e polidas de azeviche, etc..
A presença dos romanos na Lapa do Fumo está representada por cerâmicas, nomeadamente pelos bicos de ânforas. A ocupação muçulmana também é testemunha pela presença de cerâmicas. Foram também descobertas provas numismáticas (quirates do século XII) que identificaram a existência, até então desconhecida, de oficinas monetárias muçulmanas em Silves e Beja.
Imóvel de Interesse Público, geomonumento que nos conta um pouco de história da Terra e arqueo-sítio que no revela muito da história do Homem, a Lapa do Fumo está a se pilhada. Urge defender esta gruta antes que seja tarde.
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Nota: Estamos em 2008, dez anos passados, e a Lapa do Fumo continua a receber visitas... A Sesimbra'acontece - Agenda de Acontecimentos do Concelho de Sesimbra (Ano 3, nº 32, Novembro 2008) divulga uma actividade a realizar-se no próximo dia 22 de Novembro, às 9.30 a.m.! Na boa...
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